Milton Ximenes Lima
Quintais antigos, aprendizados e atitudes
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Às vezes é necessário chover, para, na solidão de uma casa, nos aprisionarmos em
casulo de íntimos pensamentos, para que antigas e enraizadas emoções venham
nos acariciar, ou nos inquietar. Despertar-nos para as distâncias misteriosas
que se anunciam além das janelas e horizontes. Chuvas, lágrimas do tempo
sugadas pelas terras do chão das planícies e das montanhas, repelidas pelas
vidraças dos refúgios dos homens e pela dureza das ruas asfaltadas, cativam
antigos olhares e odores existenciais, mesclam alegrias e tristezas, nos
oferecem, na clausura inesperada desses momentos, o mergulho para novos e
possíveis caminhos de felicidade. Às vezes, é necessário chover, para que as
crianças esqueçam o quintal dos seus folguedos e venham, com seus brinquedos,
se abrigar nas varandas das suas casas.

Foto MXL
Crianças nos quintais? Varandas das suas casas? Desconfio e
receio, aí, que estas imagens se refiram a um tempo que há muito se recolheu,
que toda essa recordação, muito pessoal, se desfaça na surpreendente revelação
da habilidade dos pequeninos de hoje, convidados, no aconchego dos seus
apartamentos, a experimentar e adotar muitíssimos toques eletrônicos, leves e
rápidas pressões de teclados e botões, que os atraem permanentemente para o
êxtase irresistível da contemplação e da manobra de múltiplas, coloridas e
sonoras imagens, anestesiando, sufocando e adiando-lhes reflexões sobre
desafios existenciais, perspectivas de vida mais próximas dos seus prazeres,
vocações e ideais. E, quanto a nós, já penteando ou disfarçando cabelos
brancos, condenados estamos a nos adaptar aos sabores e dissabores dos novos
tempos.
Quintais. Quintais cachoeirenses de Cachoeiro de Itapemirim,
1943 a 1950, cercas de madeira, por sobre as quais, ou através dos espaços das
ripas, os vizinhos interpenetravam opiniões e murmúrios. Chãos de terra e
areia, lama, nos morros ou à beira-rio, onde cachorros e gatos, galinhas,
patos, porcos atrapalhavam nossas caminhadas. A descoberta e a curiosidade
sobre as manias de viver dos menores seres: aranhas, baratas, formigas,
tanajuras, minhocas, lagartas, besouros, joaninhas, louva-deuses, cigarras,
abelhas, vaga-lumes, insetos diversos, permanentes ou sazonais; os morcegos,
as aves a bicar o que lhes interessava...desde as gingas dos urubus no terreno
até aqueles, quase domésticos, de olho nos restos de comida ou nas árvores
frutíferas. A mangueira, que nos oferecia os fortes caules para o desafio e o
prazer de neles subir, e também nela pendurar e amarrar as cordas do nosso
improvisado balanço; a goiabeira, o pé de cajá-manga, cujos frutos nunca nos
permitiram definir exatamente o seu gosto. A bananeira, a caramboleira, os pés
de fruta-pão e de abiu. O prazer de escavar, plantar, acompanhar e colher os
ramos de certos grãos de crescimento rápido, como o milho, o feijão (antes que
as galinhas os descobrissem). Flores, também. As pequenas e verdes folhagens
do arroz, cultivado na água e algodão, em velhas xícaras ou potes (só para
enfeitar a casa). À beira-rio, fora dos tempos das enchentes, saltos sobre
pedras que nos levavam à pequena ilha do Itapemirim, o cerco, em “ocas”, aos
pequenos peixes e camarões, os banhos em águas rasas. Brincadeiras únicas e
pessoais, as caixas de sapato ou mesmo de fósforo, ou abandonadas latas de
óleo, imaginadas como veículos, arrastadas para lá e para cá; o cabo da
abandonada vassoura sendo viva cópia do ligeiro cavalo do roceiro que passava
na rua ou do mocinho americano do filme do cine Central ou do Santo Antonio;
brincadeiras coletivas, com o(a)s amiguinho(as), como correrias de um pique,
ou não, pular cordas (“chicote queimado”), mãos e pés desajeitados no controle
ou troca da posse de uma bola, jogos das bolas de gude, de “porco” nos tempos
chuvosos (cerco e aprisionamento de caçapas ou buracos, cada um pertencente
aos dois jogadores, através de linhas criadas por riscos feitos por
pré-determinados números de vezes, para cada um, de fincadas de um ferro
contra o chão úmido),o jogo da carniça, do roda pião, o do bilboquê, das
amarelinhas, “brigas” de mocinho e bandido, cheios de onomatopéias; disputas
de jogos “didáticos”, ilustrações coloridas sobre papelão, com ajuda de dados;
imitações de cerimônias religiosas, teatrinhos... Nossos pequenos cérebros
assumiam comportamentos dentro das possibilidades imaginativas do ambiente .
Fomos realmente crianças quando era a época de sermos crianças. Felizes
éramos, sem o saber, nas “artes” e brincadeiras. Éramos simplesmente assim,
naqueles tempos assim... Tudo isto com os livres e vulneráveis pés descalços,
grande desculpa dos adultos para nos impingirem os intragáveis
remédios-lombrigueiros da época.
Parcialmente, aqui retifico: às vezes,
nem é necessário chover, para que um homem, em lúcidos momentos, hoje, agora,
já, em meio à multiplicidade de opções de vida, também se imponha
corajosamente, provando que é mais forte que a mensagem da máquina, que a
missão maior dele consiste em fazer, dentro do possível, o que melhor gosta de
fazer e, não, a do papel a que é induzido pelas máscaras-mídias do teatro da
humanidade.

Foto MXL *
Enfim,
com emoção e inteligência, que reconte histórias dos queridos quintais para
seus filhos e netos. Incrédulos, prisioneiros de “paradisíacos” condomínios,
eles poderão até rir, porque elas serão negações das suas falsas e mecanizadas
infâncias. Pelo menos, lance esta semente. Pode ser mesmo que, em determinado
momento das suas vidas, talvez num solitário dia, de chuva ou não, eles
apreendam e valorizem a mensagem desses espaços tão simples e primeiros que
tanto alegraram os corações dos seus pais e avós.
Quintais assim,
confesso, foram também cartões de apresentação do meu aprendizado inicial do
amor à natureza, com posterior vocação para caminhadas pelas matas
brasileiras. Cuidemos, pois, dela e de nós. Reparem nas atuais e constantes
irritações no humor dos mares e dos continentes... eis a Mãe-Terra, nosso
quintal universal, se revelando cansada de nós.
(*) casa em que
residiu o cantor Roberto Carlos, em Cachoeiro, ES.

Milton Ximenes é cronista, contista e poeta RJ
miltonxili@gmail.com
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