01/10/2005
Número - 444
ARQUIVO IRENE SERRA
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Irene Serra
Qualquer guarda-chuva serve
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No primeiro sábado de cada mês, sempre
pela manhã, Arthur ia ao barbeiro. No caminho, comprava o jornal
e um pacote de balas de café - que seriam levados intocados para casa,
causando alvoroço na turminha que os esperava.
Gostava daquele hábito de cortar seu cabelo com o bom Paradelas, com quem
já estava habituado há mais de 20 anos. Um, culto e educado, gestos finos,
português escorreito. O outro com sotaque carregado, simplório, só
português. Mas como se davam bem! Tão bem que, quando Paradelas se
aposentou, Artur o convidou para ir à sua casa, regularmente, cortar o
cabelo dos homens, pois os filhos, já rapazolas, faziam questão de estar
tão bem cuidados quanto o pai.
E Paradelas chegava sempre com um caso a ser contado, cativando a
clientela que, àquela altura, já era formada por alguns vizinhos e amigos.
Minucioso, lavava as mãos com um bom sabonete perfumado, antes de forrar a
mesa da varanda com uma toalha que trazia em sua valise para, só então,
arrumar os apetrechos de cabelo e barba na ordem em que os usaria.
Espalhava talco na nuca do cliente da vez, colocava-lhe um avental e começava seu ofício.
Silencioso, esperava que lhe fosse dado um sorriso de aquiescência para
que também começasse a falar. E vinham as estórias... “um certo dia...”
“Dia de chuva forte que caíra inesperadamente, calçadas alagadas, entra um
distinto senhor no estabelecimento querendo um corte bem rente, podia
demorar o tempo que fosse. O salão estava cheio, pessoas esperavam em pé,
mas cada um que chegava não se incomodava com essa espera. E o Paradelas, sabendo que, na verdade, estavam se refugiando da chuva,
aproveitava para engordar sua féria com aqueles atendimentos extras. De
vez em quando ele observava aquele senhor, freqüentador habitual, mas que
inexplicavelmente olhava com vinte olhos tudo que se passava em volta.
Até que chega a vez do tal homem, que se senta e fica com os olhos fixos
no espelho. Naturalmente a conversa se desenrola e o cabeleireiro,
curioso, quer saber se tudo está bem, se algo errado havia acontecido, além daquele tempo horroroso que atrapalhava a todos.
E o senhor se lamenta de ter esquecido seu guarda-chuva da última vez em
que lá estivera. Se tivesse tido tempo teria voltado para pegá-lo, mas os
afazeres foram se acumulando e ele acabara por esquecer. Agora que estava
ali, aproveitaria para levá-lo. Seria em boa hora, com aquela chuva que
não cessava.
- Pois não. Como é mesmo seu guarda-chuva? Se esqueceu aqui nós o
guardamos, certamente.
Com leve ar ingênuo, o elegante freguês complementa: - É um guarda-chuva
comum, bem velhinho, até mesmo com defeito. Estive olhando as pessoas que
pegavam seus abrigos ao sair. Ninguém se incomodou com um que continua ali
no cantinho, tal qual como quando eu cheguei. Ele não tem mesmo dono,
então deve ser o meu.
- Onde? Me mostra. Não estou vendo!
- Ali, ó! À esquerda, no cabide quase escondido pelo espelho. - E vira a
cabeça do barbeiro para que este visse a direção que indicava.
- O quê? Aquele arrebentadinho ali? Aquele é o meu!”
E o Arthur, entrando naquele momento na varanda, pisca marotamente: - Ora, Paradelas, em chuva
que molha os ossos qualquer guarda-chuva serve!
(01 de outubro/2005)
CooJornal no 444
Irene Vieira Machado Serra
foniatra, editora da Revista Rio Total
RJ
irene@riototal.com.br
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