Irene Serra
MAÇÃZINHA ROSADA
|
|
Nasceu, e bem aqui caberia usar o chavão popular, em berço de ouro. Não
era novidade naquela casa repleta de crianças entrando e saindo em uma
algazarra e zoeira que contagiava até os mais velhos, o aparecimento de
mais um rebento.
Só que dizem, sua chegada da Beneficência Portuguesa, onde nascera, mudou
o cotidiano da família. A começar pela enfermeira que, ao entregá-la ao
orgulhoso pai, exclamou em forte sotaque: - "Ora, pois, é uma maçãzinha
rosada esta sua filha." Só que não ficou nos cumprimentos de praxe, fez
questão de ser ela própria a levar a menina para casa. - "É para que não a
apertem muito! É tão frágil! Um docinho! Acabam esburrachando esta
criança!"
E de nada adiantava dizer à robusta portuguesa que a mãe saberia muito bem
lhe dar cuidados, além do que, ali já estava a postos a babá dos outros
irmãos. Por sua vez, a babá já demonstrava sinais de irritação com aquela
visita ofensiva que lhe tirava dos braços o anjinho que, ela também,
sentia que carregara no seu ventre, pois inúmeras vezes pusera as mãos
sobre a barriga da patroa a sentir o feto se saracoteando em nado livre.
Eram duas mães, não havia lugar para mais ninguém!
À noite, momento sagrado: o quarto quase na penumbra, com ternura o pai a
aconchegava ao colo e, a andar de um lado ao outro, cantarolava suavemente
Brahms, Mendelson, Liszt, improvisando as mais lindas canções de ninar;
canções estas que passaram a fazer parte de sua estrutura emocional e
foram o esteio de seu conhecimento musical.
Assim crescia a menina, rodeada de carinho e só conhecendo o amor e a
felicidade.
No entanto, nesta mania que os adultos têm de se expressar afetivamente
usando tudo em inho e de levar as sensações ao paladar, constantemente
estava a ouvir: "A boca é um moranguinho!", "Vem aqui, meu algodão-doce!",
"Ah, os cabelos são cor de mel!". E, a cada uma destas comparações, lá
vinham os pais relembrar a história da enfermeira.
Até que certo domingo, chega um tio a passeio. Mal a vê, exclama: - "Vem
aqui, bolachinha do titio!". E tocou a lhe apertar as bochechas entre os
dedos, afetuosamente. Neste momento, a mãe chama a copeira, orientando-a a
levar a filha para dentro e mandando-a servir o lanche, não esquecendo a
torta de maçã, que o visitante tanto apreciava.
Súbito, uma explosão de gritos e choro. O pai aflito corre e encontra a
criança agarrada à saia da babá: - "Me protege. Sei que sou uma maçãzinha,
mas não quero ser servida no lanche!"
(07 de maio/2004)
CooJornal no 367
Irene Vieira Machado Serra
professora,
foniatra, psicóloga, editora da Revista Rio Total
RJ
irene@riototal.com.br