01/09/2025
Ano 28
Semana 1.473





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de
MÚSICA



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Preta Gil (1974-2025)



Cândido Luiz de Lima Fernandes


Preta Maria Gadelha Gil Moreira, cantora, atriz, apresentadora e empresária brasileira nasceu no Rio de Janeiro em 8 de agosto de 1974 e faleceu em Nova Iorque em 20 de julho de 2025. Filha do músico Gilberto Gil e da empresária Sandra Gadelha, era também meia-irmã do músico Bem Gil, da culinarista e apresentadora Bela Gil e da cantora Nara Gil e sobrinha do músico Caetano Veloso.

Iniciou sua carreira profissional como diretora nas produtoras Conspiração e Dueto, onde também era sócia. Em 2002, decidiu se lançar como cantora, tendo liberado quatro álbuns de estúdio: “Prêt-à Porter” (2003), “Preta (2005)”, “Sou Como Sou” (2012) e “Todas as Cores” (2017). Como personalidade de televisão, atuou como atriz em telenovelas como “Agora É que São Elas” (2003) e “Caminhos do Coração” (2007–08), e apresentou programas como “Caixa Preta” (2004) e “Vai e Vem” (2010), além de integrar o elenco fixo do “Esquenta!” (2011–13). No carnaval do Rio de Janeiro foi a criadora do “Bloco da Preta”, um dos marcos dos chamados megablocos da cidade.

Preta Gil era filha do músico Gilberto Gil com a empresária Sandra Gadelha, com quem o artista casou-se em 1969 e viveu até 1980. Os dois também são pais de Pedro, nascido em 1970, em Londres, durante o exílio de Gil na ditadura militar no Brasil, e Maria, nascida em Salvador, em 1976. Preta teve outros irmãos pelo lado paterno: Bem Gil, Bela Gil, Nara Gil, Marília Gil e José Gil. Criada desde a infância nos bastidores do meio artístico, Preta teve como madrinha a cantora Gal Costa e era sobrinha do cantor e compositor Caetano Veloso, que foi casado com Dedé Veloso, irmã de sua mãe. Assim que casaram, Gilberto Gil e Sandra foram para Londres, Reino Unido buscando exílio durante o regime militar. Em 1972, o casal retornou para o Brasil, direto para Salvador, Bahia e, depois, para o Rio de Janeiro. Apesar de ser fruto de um relacionamento inter-racial, entre uma mulher branca e um homem negro, a cantora se identificava como negra, explicando: "O [nome] Preta é responsável pela minha força, pela minha personalidade. Eu sou uma mulher mestiça, que me considero preta. Sempre me considerei preta não só pelo meu nome, mas pela minha ancestralidade, pela figura do meu pai, da minha família. Conforme fui crescendo, entendi que estava misturado, mas sempre me senti preta".

A artista teve como segundo nome Maria, segundo contou a própria cantora, por conta de uma condição imposta pelo tabelião do cartório para registrá-la como Preta, conforme a artista contava: "Meu pai foi ao cartório, me registrar, com a minha avó materna, a vó Wangry, minha avó branca, que é mãe da minha mãe. Chegando lá o tabelião falou: 'Você não vai poder registrar o nome de sua filha de Preta.' Imagina! Vocês conhecem meu pai, sabem que ele gosta de falar e já começou a fazer discurso. 'Mas por quê? Existem Biancas, Brancas, Claras, Rosas e não pode ter Preta?' E o tabelião disse: 'Tudo bem, você vai botar Preta, mas só se botar um nome católico junto.' Então eu me chamo Preta Maria por conta do tabelião e pela Mãe Divina." Preta viveu no Rio de Janeiro até um ano de idade e, depois, mudou-se com a família novamente para Salvador, onde foi alfabetizada.

Ao voltar a morar no Rio de Janeiro, em 1979, durante o período escolar, chegando na escola nova, a professora pediu que ela falasse o alfabeto para toda a turma. Como tinha aprendido as letras em Salvador, Preta se animou para declamá-las, mas foi surpreendida com os risos dos colegas. O preconceito linguístico da professora e dos colegas se deu pela fonética das letras. Em Salvador e em outras cidades do Nordeste do Brasil, algumas letras costumam ser ensinadas de forma diferente para as crianças. Ela também sofreu bullying na escola devido à fama de seu pai e à visão negativa que alguns colegas tinham sobre ele, conforme a cantora conta em seu livro “Preta Gil: Os primeiros 50”: "Meu pai naquela época era mais conhecido por já ter sido preso e por fumar maconha, do que como um ídolo. Era uma coisa meio; 'cuidado, ela é filha de negro, marginal, preso, que usa trança no cabelo". Desde a tenra idade Preta Gil já se sentia atraída pela música e o palco, conforme contava: "Palco era uma coisa que me atraia muito. Toda vez que eu ia em show do meu pai, quando chegava no bis, que eu sabia que ele já tinha feito a parte dele, ele nem me chamava, mas eu e meu irmão Pedro subíamos lá. Ele ia pra percussão e eu já ia pro lado da minha irmã Nara, que era vocalista de apoio do meu pai, e já ficava cantando". Pedro morreu em 1990, aos 19 anos, em decorrência de um acidente de carro, fato que abalou profundamente a família Gil.

Preta Gil começou a trabalhar na década de 1990 nas produtoras Conspiração e Dueto, onde criou videoclipes para cantoras como Ivete Sangalo e Ana Carolina e dirigiu materiais de grupos como KLB e SNZ, tendo papel fundamental na popularização do formato no Brasil. Seus trabalhos incluem ainda produções como "Criança", de Marina Lima, sua prima por parte de mãe. Em junho de 2002, motivada por amigos, decidiu investir na carreira de cantora e organizou um show no Rio de Janeiro. Em entrevista para a MTV Brasil, em 2003, ela comentou sobre esse momento: "Tinha alguma coisa que me agoniava, uma angústia, uma insatisfação que eu não sabia o que era porque, afinal de contas, eu era bem-sucedida, consegui crescer profissionalmente, financeiramente, tinha minha produtora e era querida por todo mundo com quem eu trabalhava. Por que eu não era feliz? Fui descobrir com terapia que era porque eu estava fugindo da minha essência, de mim mesma. O que eu queria mesmo era cantar, representar e fui me aprofundar mais em mim mesma e descobrir se essa minha intuição para o dom que eu tinha estava certa, se era isso mesmo. E descobri que era. Fiz um primeiro show para meio que me testar mesmo. E foi tão bacana que eu achei muito bom continuar e caminhar nesse sentido.”

Após reunir alguns músicos, ela gravou um disco demo, ganhando o interesse da Warner, que lhe ofereceu um contrato de gravação. O álbum de estreia da artista, intitulado “Prêt-à Porter”, foi lançado em agosto de 2003. A capa e o encarte, na qual a cantora aparece nua, fotografada por Vania Toledo, teve muita repercussão. A ideia era que as imagens simbolizassem o seu renascer como artista, mas acabou dando o que falar para além do seu significado; em entrevista para a Forbes, ela revelou: "Me chamavam mais para entrevistas do que para cantar", contando que, por vezes, havia mais interesse em saber o que o pai dela achou das fotos do disco do que da música em si. "Eu costumo dizer que eu era a Preta no mundinho da Tropicália, achava que as pessoas eram que nem a minha família – o mundo não era assim". Em uma crítica do projeto feita para o jornal “O Globo”, Bernardo Araujo considerou a ideia da cantora um misto de "apelação e mau gosto", enquanto a crítica do jornal “Tribuna da Imprensa”, Mônica Loureiro, questionou que, "se isso foi para chocar ou aparecer, é apenas uma opção dela. Será que alguém questionaria se ela estivesse dentro dos padrões de magreza branca?".

Em julho estreou como atriz, dando vida à personagem Vanusa Silveira na telenovela “Agora É que São Elas”, da Rede Globo. Em março de 2004, assinou contrato com a Rede Bandeirantes, a convite da diretora Marlene Mattos, visando iniciar a carreira de apresentadora. Ela passou a comandar o “Caixa Preta”, nas noites de sábado da emissora, a partir de 31 de julho. Nesse período, foi convidada pela escritora Gloria Perez para integrar o elenco da novela “América”, da Rede Globo, mas recusou para priorizar o programa. O “Caixa Preta” foi cancelado em outubro porque a Bandeirantes descobriu que ela teria feito teste para substituir Angélica, na apresentação do Video Game, durante sua licença maternidade.

O segundo álbum de estúdio da artista, intitulado “Preta”, foi lançado em outubro de 2005 pela Universal. A troca de gravadora, de acordo com a intérprete, deu-se porque a Warner tolhia suas visões artísticas. No ano seguinte, estreou nos teatros, no espetáculo “Um Homem Chamado Lee”. Na peça, dirigida por Rodrigo Pitta, Preta Gil interpretou uma travesti chamada Linda Lee ou Ivanildo Pereira, que tem fixação pela cantora Rita Lee e quer ser ela a qualquer custo. Em 2007, interpretou a vilã Helga, em “Caminhos do Coração”, da Rede Record. Anos mais tarde, ela revelou ter ficado surpresa com o sucesso da personagem: "Fiz um show em Cabo Verde na época, na África, e o aeroporto estava lotado. Eu perguntei: 'Tem alguma autoridade, alguém chegando comigo?' Minha produtora respondeu: 'Estou vendo as pessoas com cartazes escrito Helga', nem ela lembrava o nome da minha personagem. Saí no aeroporto, peguei minhas malas e as pessoas gritando 'Helga'. Foi uma loucura, eu amei". Após seu personagem sair da novela, Preta voltou a se dedicar mais à música. Ela estreou sua nova turnê, chamada “Noite Preta”, onde em 20 de outubro de 2009 gravou seu primeiro álbum ao vivo, na boate The Week, no Rio de Janeiro. O álbum contou com as participações de Ana Carolina ("Sinais de Fogo") e Gilberto Gil ("Drão"), acompanhado na guitarra pelo neto Francisco, filho de Preta. Em 2010, foi apresentadora do talk show “Vai e Vem”, do canal a cabo GNT. Na atração, ela recebia um convidado famoso para tratar sobre a vida sexual dele. O cenário era um elevador que desce e sobe. O programa foi exibido semanalmente às sextas-feiras.

Também assumiu protagonismo no Carnaval, através do “Bloco da Preta”, lançado em 2010.

Entre 2011 a 2013, Gil foi comentarista do programa dominical “Esquenta”!, da Rede Globo, e atuou como Gláucia em um episódio da série “As Cariocas” (2010). No dia de seu aniversário de 38 anos,em 8 de agosto de 2012, lançou seu terceiro disco de estúdio, “Sou Como Sou”, por sua própria gravadora independente; a DGE Entertainment. A cantora celebrou 10 anos de carreira musical com a gravação de seu segundo álbum ao vivo “Bloco da Preta”. A celebração, que teve três horas de duração, aconteceu na noite do dia 23 de outubro de 2013, no Cintou, e contou com as participações de Lulu Santos, Ivete Sangalo, Anitta, Israel Novaes e Thiaguinho. Seu último álbum de estúdio,” Todas as Cores”, foi lançado em 2017. O material trouxe participações dos cantores Pabllo Vittar, Marília Mendonça e Gal Costa. Em 2024, lançou a autobiografia “Preta Gil: os primeiros 50”, no qual aborda o diagnóstico de câncer e o fim conturbado do casamento com Rodrigo Godoy, após uma traição enquanto a artista enfrentava o tratamento da doença. Em um dos momentos do livro, ela escreve: "A vida me deu a chance de enfrentar um câncer, de terminar relações que não me enriqueciam e de começar outras. Me deu a chance de ser avó! e de ser cada vez mais Preta".

Em seu livro, “Preta Gil: os Primeiros 50”, a cantora relatou que seu primeiro relacionamento foi com uma mulher, chamada Adriana. Ela escreveu: "Era linda, também era modelo, bem andrógina. Eu me apaixonei. A exemplo do que aconteceu com os crushes da escola, Adriana me prendeu a Salvador". O primeiro casamento da artista durou dois anos, e foi com o ator Otávio Müller com quem teve seu único filho, Francisco Gadelha Gil Moreira Müller de Sá, nascido em 25 de janeiro de 1995. Seu segundo matrimônio foi com o cineasta Rafael Dragaud, no início dos anos 2000. Durante o relacionamento, Gil engravidou duas vezes, mas sofreu abortos espontâneos, um deles no quinto mês. Foi casada, entre 2009 e 2013, com o mergulhador Carlos Henrique Lima. Também se relacionou com os atores Fábio Assunção, Marcos Palmeira, Caio Blat, Paulo Vilhena, o apresentador Marcos Mion e o cantor Márcio Victor. Entre 2015 e 2023 foi casada com Rodrigo Godoy, professor de educação física Em 2023, a artista anunciou o divórcio, depois de descobrir uma traição por parte do então marido com sua ex-estilista: o caso ocorreu enquanto ela realizava o tratamento contra o câncer. Em 24 de novembro de 2015 tornou-se avó de uma menina batizada como Sol de Maria, nascida na Clínica Perinatal, no Rio, na Barra da Tijuca, fruto da união de seu filho com a modelo Laura Fernandes. No início de 2025, Preta Gil teve um envolvimento com o cantor Danrlei Orrico, conhecido pela alcunha artística de “O Kanalha”. Após o fato vir à tona, artista comentou que os dois desenvolviam uma "intimidade saudável". Preta se declarava abertamente bissexual e pansexual, afirmando já ter tido relações sexuais com mulheres. A cantora também foi defensora dos direitos LGBT.

Em janeiro de 2023, declarou que havia sido diagnosticada com câncer no intestino. Após meses em tratamento, foi submetida a uma cirurgia para retirada do tumor que deixou-a com uma ileostomia, uma deficiência física em que parte do intestino delgado é exposta no abdômen, e as fezes são recolhidas por meio de uma bolsa coletora no local. Em agosto de 2024, Preta anunciou que o câncer havia entrado no estado de recidiva, resultando em dois tumores nos linfonodos, um nódulo no ureter e uma metástase no peritônio, e retomou o tratamento com quimioterapia. Com isso, fez uma nova cirurgia nos dias 19 e 20 de dezembro de 2024 para remoção de tumores, durando 21 horas

Em maio de 2025, Preta Gil viajou para os Estados Unidos, dando início ao tratamento com uso de medicamentos em fase experimental, e pretendia retornar ao Brasil em agosto para serem dados os próximos passos pela equipe que assistia a cantora. Em 20 de julho de 2025, Preta morreu em Nova Iorque em meio ao tratamento do câncer no intestino, com a informação sendo divulgada pela assessoria de imprensa da cantora e da família. De acordo com informações dos familiares ao “Jornal Nacional”, ela passou mal quando estava prestes a embarcar para o Rio de Janeiro, sendo retirada do aeroporto em uma ambulância, onde viria a morrer a caminho de um hospital na cidade. A cantora desejava voltar para sua casa no Rio após receber dos médicos a informação de que não havia mais o que ser feito no tratamento contra o câncer. O tratamento da artista contra o câncer foi marcado por coragem e transparência. Desde o diagnóstico, ela compartilhou com o público cada etapa do tratamento, incluindo cirurgias complexas, sessões de quimioterapia e momentos de vulnerabilidade. Sobre isso, a Sociedade Brasileira de Oncologia exaltou seu legado de enfrentamento público da doença e conscientização para o público da busca por ajuda, declarando: "O enfrentamento público do câncer ajudou a quebrar tabus e serviu de inspiração para muitos fãs e pacientes". Em outra matéria, o portal “Terra” destacou: "Sua batalha contra o câncer, acompanhada de perto pelo público, humanizou a doença e trouxe à tona a importância da saúde mental e do apoio emocional. O velório de Preta aconteceu no dia 25 de julho no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, atendendo a um pedido pessoal da cantora, e seu corpo foi cremado no Cemitério da Penitência, na região do Caju, passando por um cortejo no carro do corpo de bombeiros no mesmo itinerário de onde circulava o seu bloco no Carnaval, que foi nomeado de “Circuito de Blocos de Rua Preta Gil” através de um decreto do prefeito Eduardo Paes (PSD).

Durante toda sua carreira, Preta Gil foi uma voz ativa nas lutas contra o racismo, a gordofobia e a homofobia. A cantora sempre disse que sua existência era marcada pela exaltação de um padrão branco, magro e eurocentrado, mas ela ousou ser ela mesma. Mulher negra, de corpo fora dos padrões, enfrentou a gordofobia com peito aberto, denunciando a opressão estética e afirmando que beleza e potência não cabem em medidas. 'Cansei de me odiar, agora quero me amar', dizia em entrevistas". A artista se embasou em um discurso poderoso que ligava imagem, identidade e estrutura social. Sabia que falar do próprio corpo era tocar em sistemas inteiros de opressão. Ela usou seu lugar público para isso. Em seus shows, falas e entrevistas, sempre reafirmava a importância da autoaceitação, mas também da transformação coletiva, incentivando todos e todas a refletirem sobre os papéis sociais impostos. Em entrevistas e redes sociais, falava abertamente sobre sua identidade e os desafios enfrentados por mulheres negras e fora dos padrões estéticos convencionais. O portal  Terra escreveu: "Longe dos estereótipos de beleza impostos pela indústria [da moda], ela abraçou seu corpo e sua identidade, inspirando milhares de mulheres a fazerem o mesmo. Sua defesa fervorosa da liberdade, do amor em todas as suas formas e da inclusão era uma constante em suas falas e atitudes. Não à toa, celebridades e anônimos se uniram em uma corrente de homenagens após sua morte, ecoando o impacto de sua presença. O pesar foi sentido em diferentes gerações de artistas, que viam nela uma referência de coragem e representatividade".

Após seu falecimento, a Prefeitura do Rio de Janeiro oficializou em 24 de julho o nome "Circuito Preta Gil" para o trajeto dos megablocos de Carnaval no Centro da cidade. Uma placa foi instalada na Avenida Presidente Antônio Carlos, marcando o reconhecimento à cantora, que desfilou por mais de duas décadas no local e se tornou símbolo das festividades da cidade.

Seu legado vai além da música, abrangendo a coragem de viver plenamente, de rir, chorar e lutar com dignidade. A ausência de dor em seus últimos instantes e o amor que a envolveu oferecem um conforto para seus entes queridos e para todos que foram tocados por sua existência, reafirmando que o amor, de fato, vence a tudo, até mesmo a dor mais profunda.

Descanse em paz, Preta Gil!
 

Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email: candidofernandes@hotmail.com





Direção e Editoria
Irene Serra
Revista Rio Total