01/03/2024
Ano 27

Semana 1.357







 
ARQUIVO
de
MÚSICA

 

 

 

 




Carlos Lyra (1933-2023)



 


Cândido Luiz de Lima Fernandes



Carlos Lyra, um dos precursores da bossa nova, morreu aos 90 anos no dia 16 de dezembro. Ele havia sido internado na quinta-feira, dia 14, com febre e teve uma infecção, segundo sua mulher e produtora, Magda Botafogo. Deixou uma filha, Kay, fruto de sua união com Kate Lyra.

De 1958 a 1965, Carlos Lyra, em parceria com Vinicius de Moraes, Ronaldo Bôscoli e poucos mais, produziu lindas canções como "Primavera", "Minha Namorada", "Marcha da Quarta-Feira de Cinzas", "Coisa Mais Linda", "Canção que Morre no Ar", "Lobo Bobo", "Saudade Fez um Samba", "Se É Tarde me Perdoa", "Feio Não É Bonito", "Samba do Carioca", "Samba da Legalidade", "Aruanda", "Quem Quiser Encontrar o Amor", "Influência do Jazz", "Sabe Você", "Você e Eu", "Maria Ninguém", "Maria Moita" e muitas mais — gravadas por João Gilberto, Nara Leão, Sylvia Telles, Astrud Gilberto, Elis Regina, Billy Eckstine, Brigitte Bardot e incontáveis grupos instrumentais. Segundo Tom Jobim, "Carlinhos é o maior melodista da bossa nova".

Seu mais antigo parceiro — e cordial desafeto — Ronaldo Bôscoli o definiu, dizendo "Carlinhos Lyra é o contrário do vinho". "Quanto mais moço, melhor."
Bôscoli sabia o que dizia. Os dois juntos, e mais uma plêiade de garotos por volta dos 20 anos, compunham uma turma que, naquela época, passava as noites no apartamento da quase adolescente Nara Leão, na avenida Atlântica, em Copacabana, para tocar violão, trocar acordes, cantar suas composições, rir muito e filar o uísque do dono da casa, pai de Nara. No futuro, diriam que a bossa nova nascera no apartamento de Nara Leão. Mas Lyra, que vinha da pré-história do novo ritmo, sempre negou que tivesse sido assim. E acrescentava "nem a Nara nasceu no apartamento da Nara".

Embora tenha sido um dos criadores do movimento, Lyra foi quem mais procurou discutir o gênero — o que, às vezes, resvalou em posições contraditórias.Em meados dos anos 60 Carlos Lyra atuava no CPC, o Centro Popular de Cultura e se afastou de Jobim, Bôscoli e outros que considerava de "direita" e chegou a propor um novo nome, "sambalanço", para sua música. O nome não pegou e ele voltou à denominação original. Em 1962, se insurgiu também contra o que considerava um excesso de influência do jazz na bossa nova, principalmente a praticada no Beco das Garrafas — donde o seu samba-manifesto, "Influência do Jazz".

Mas, já em 1963, gravou um disco, "The Sound of Ipanema", com o saxofonista americano Paul Winter e, em 1964, viajou pelos Estados Unidos com o principal jazzista da bossa nova, o também saxofonista Stan Getz. E foi também talvez o único a praticar explicitamente uma variedade rítmica dentro da bossa nova —sua obra é composta de boleros, como "Maria Ninguém", marchas-rancho, como "Marcha de Quarta-Feira de Cinzas", e sambas-canções, como "Minha Namorada".

Lyra pertenceu a uma extraordinária geração de compositores dos anos 1960 que incluiu, entre outros, os americanos Henry Mancini, Burt Bacharach, Neil Hefti, Cy Coleman e Stephen Sondheim, o italiano Nino Rota, o francês Michel Legrand, o mexicano Armando Manzanero e, claro, Antonio Carlos Jobim.
Todos fizeram música para cinema, televisão e teatro, sem prejuízo de canções avulsas, para seus cantores favoritos. Durante toda aquela década, eles foram, em escala internacional, a grande alternativa ao rock que já começava a impor sua ditadura ao mercado. Uns mais, outros menos, eles chegaram ainda fortes aos anos 1970, mas, dez anos depois, todos tinham sido varridos das paradas de sucesso por um tipo de música que já não exigia melodia e harmonia sofisticadas.

Nesse interregno, Lyra se interessou por astrologia, aliás, pela "astrologia sideral", que propunha uma nova ordem para os signos do zodíaco, e escreveu um livro a respeito. E começou também uma longa carreira de shows baseados em seu repertório clássico.

As pessoas se perguntavam por que ele nunca mais compôs coisas como "Primavera" ou "Minha Namorada". Não é porque ele tivesse perdido a inspiração. O mercado é que não quis saber mais dele ou de quem fizesse música bonita. A prova de que a inspiração não abandonara Carlos Lyra está nas quase 20 grandes canções — com fabulosas letras de Aldir Blanc — que ele compôs para "Era no Tempo do Rei", um musical brasileiro que, por três meses de 2010, lotou o teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, e saiu de cartaz sem que nenhum cantor se interessasse por elas. Foi pena — muitas mereciam ter ganhado vida própria, fora do palco.

É possível que, ao falar da morte de Lyra, alguns jornalistas o deem como nascido em 1936, 1938 e até 1939 — confusão criada por ele próprio, numa tentativa de deter a passagem dos anos, e ratificada em seu livro "Eu & a Bossa", cheio de imprecisões, lançado há 15 anos. Mas a data certa é 11 de maio de 1933. Data que, no passado, Lyra admitia com tranquilidade — quando não apenas a bossa ainda era nova, mas ele também, e, em 1963, a admirada Jacqueline, a mulher do presidente John Kennedy, passava o dia cantarolando "Maria Nobody" pelos corredores da Casa Branca. Brigitte Bardot também gravou “Maria Ninguém”, cantando em português.
Na verdade, a única dúvida seria quanto ao seu signo — touro, pela astrologia tradicional; áries, pelos novos cálculos que ele tinha feito pela "astrologia sideral".

Carlos Lyra se identificava profundamente com a ideia de levar a cultura da classe média de esquerda ao povo e, ao mesmo tempo, absorver e propagar a cultura da classe trabalhadora em suas manifestações, e por isso foi escolhido para dirigir o setor de música popular do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE).”

A participação de Carlos Lyra no CPC é um dos eixos mais significativos da trajetória do cantor e compositor carioca. A iniciativa de estabelecer uma via de contato mútuo entre artistas, intelectuais e estudantes com as classes populares fez do CPC uma experiência marcante na história artístico-política do Brasil durante o período em que esteve ativo, do início dos anos 1960 até sua interrupção com o Golpe Militar de 1964. Arte e engajamento andavam de mãos dadas.

Carlos Lyra foi um desses artistas que, desde meados dos anos 1950, absorviam as diversas correntes e influências artísticas, lendo-as a partir de uma lente de esquerda. Lyra surge para o mundo da música quando o País aprofundava sua industrialização, abrindo-se ao capital estrangeiro, tendo o rádio como veículo de massas da classe trabalhadora e as gravadoras buscando atender tanto às demandas das gerações mais velhas como das mais jovens – estas últimas, antenadas nas diversas baladas românticas de rock e no jazz.

Era o momento nascente da nova estética musical que ressoaria dentro e fora do Brasil. Mas em Carlos Lyra a cultura dos morros e das ditas “favelas” também se encontrava nesse mesmo espaço de inovação. A bossa nova incorporava cadências jazzísticas, delicadas dissonâncias harmônicas, um imaginário de caráter lírico, e Carlos Lyra foi um artista profundamente identificado com tudo isso. Ele transitou na confluência de tudo isso sem perder o prumo artístico que o orientava. O lirismo bossa nova de Lyra não era, portanto, uma contradição em relação à sua perspectiva de homem de esquerda. Lyra politizou esse lirismo e foi a partir dessa veia política pulsante que ele se engajou e realizou trabalhos fundamentais dentro do grande projeto de cultura épica dos anos 1960: o projeto do CPC da UNE.

No livro “Do Teatro Militante à Música Engajada: a Experiência do CPC da UNE (1958-1964)”, a historiadora Miliandre Garcia afirma: “No início dos anos 1960, a atuação de Carlos Lyra como criador e mediador musical sintetizou alguns dilemas que se apresentaram ao artista de classe média engajado nas causas nacionalistas: como compor música ‘intimista’ sem ser chamado de alienado; como participar da fundação e organização do CPC sem abdicar da carreira profissional e do ingresso no mercado fonográfico; e como manter a qualidade técnica e estética conquistada pela bossa nova sem ignorar a tradição da música urbana brasileira”.

Ao refletir sobre as diversas atuações de Carlos Lyra, a professora Maria Silvia Betti acrescenta: “Considero fundamental, para todas essas formas de participação, o fato de Lyra ter sido um artista ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), que pensava a arte e a cultura a partir de uma perspectiva de esquerda e, por isso, ter se sentido concernido e identificado com o objetivo de colocar em pauta os problemas reais do País, os pontos de estrangulamento econômico e social”. Exemplo disso pode ser escutado na “Canção do Subdesenvolvido”, composta para o disco “O Povo Canta”, do CPC, de 1961, e que se tornou uma espécie de hino da UNE- União Nacional dos Estudantes..

O músico Roberto Menescal esteve com Lyra poucos dias antes de ele morrer. Amizade de quase 70 anos, desde que se conheceram na escola, em 1955. Foram muitas aulas a menos depois dessa amizade, mas muita inspiração a mais, com as cordas dos violões amarrando o futuro de uma turma que incluiria Nara Leão, Ronaldo Bôscoli, Vinicius de Moraes e tantos outros que instauraram novos rumos à música no Brasil. Um dos ícones dessa turma, Tom Jobim telefonou um dia para Menescal convidando-o para ir à sua casa: “Vem cá porque eu estou aqui ouvindo um songbook do Carlinhos (Lyra) e estou impressionado como as músicas dele são boas. E eu escrevi na pauta uma das músicas dele, e além de tudo tem um desenho bonito”. Menescal foi à casa de Tom Jobim e eles tocaram algumas músicas juntos. “Aí o Tom falou uma coisa que eu nunca mais me esqueci: 'O Carlinhos é o maior melodista do Brasil'”, relembra Roberto Menescal.

Quando Menescal analisa o papel de Carlos Lyra na história da bossa nova, traz uma imagem interessante: os 15 metros de janela do apartamento de Nara Leão, com vista para o mar de Copacabana. Segundo ele, aquele ambiente delineava as músicas que aquela turma compunha. Mas Carlos Lyra foi ampliando seu alcance de visão. “Ele passou a falar das coisas que a gente não falava. O Carlinhos começou a ir para a esquerda. Cantou o Nordeste, assumiu a ligação com os sambistas do morro, como Zé Keti, Nelson Cavaquinho”. E sintetiza: “A gente era Praia de Copacabana e pronto. Já o Carlinhos abriu a música brasileira, engrandeceu os motivos da nossa música brasileira”.

Descanse em paz, Carlinhos Lyra. Suas lindas canções não serão jamais esquecidas.




Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com



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Direção e Editoria
Irene Serra