01/08/2022
Ano 25

Semana 1.282







 
ARQUIVO
de
MÚSICA

 

 

 

 




O show de Mônica Salmaso e André Mehmari

em homenagem aos 80 anos de Milton Nascimento



Cândido Luiz de Lima Fernandes



A música de Milton Nascimento é sagrada. Embute forte componente sacro, não apenas quando ecoa as batidas dos sinos das catedrais de Minas Gerais. Como o canto solene de Mônica Salmaso também tem algo de celestial, a abordagem da obra desse compositor de alma mineira pela voz dessa artista paulistana resulta sublime em muitos momentos. O encontro acontece em Milton, recital que vem sendo apresentado por Salmaso com o pianista André Mehmari em vários teatros do país.

Derivado de registro audiovisual gravado pelo duo em estúdio em dezembro de 2020 e lançado em 15 de janeiro de 2021 no YouTube, o show Milton – previsto para ser lançado em disco pela gravadora Biscoito Fino em data ainda incerta – aportou na cidade do Rio de Janeiro (RJ) em apresentação que lotou o Teatro Riachuelo na noite de 26 de maio de 2022.

Tanto no disco quanto no show, que celebra que celebra os 80 anos que Milton Nascimento fará em 26 de outubro, o formalismo tradicionalista do canto da intérprete atinge altas esferas. No recital com Mehmari, que se reveza entre o piano e marimba (evocativa dos sons artesanais do grupo mineiro Uakti), esse canto reverente ritualiza a paixão e a fé que pautam a obra de Milton Nascimento, inclusive as músicas de lavras alheias que o compositor escolhe cantar com a voz divina.

Milton é fruto da quarentena. Mônica e Teco moram em São Paulo, mas cumpriram o isolamento social no interior paulista, onde têm casa. De lá, ela fez uma série de lives domésticas acompanhada de destaques da MPB, como Chico Buarque, Teresa Cristina, Ney Matogrosso e Marcos Valle, entre outros.

“Ficamos lá e saímos com raríssimas exceções. Uma delas foi depois que conversei com o André, que tem estúdio na capital, onde gravei o disco Caipira, e o convidei para fazermos algo juntos novamente”, relembra. André topou. Ele respondeu: ‘Pelo amor de Deus, não aguento mais essa solidão pandêmica’”, diz Mônica.

Em dezembro, ela e o marido, o flautista Teco Cardoso, deixaram o interior rumo ao estúdio de Mehmari. “Foi uma sessão inteira com repertório variado, coisas que eu e ele vínhamos fazendo há mais tempo. Como gravamos muita coisa, decidimos dividir em duas partes.” Foi assim que surgiu o projeto Quarentena partes 1 e 2. “Colocamos no YouTube, a primeira parte foi ao ar em 7 de novembro e a segunda no dia 14. A repercussão foi muito boa”, conta ela.

Milton começou a ser gravado em 14 de dezembro. “Tudo foi emocionante, a começar pelo fato de me encontrar com um músico com quem trabalho há muito tempo. Não via o André há quase um ano”, revela. “Usamos equipamento de ponta para fazer a melhor música possível. Isso depois que fiz lives heroicas, vídeos quase artesanais. É emocionante poder trabalhar com aquilo que lhe dá condições de apresentar o melhor.”

O novo projeto representa um mergulho na obra de Milton. “André adora tudo dele, tocou e ainda toca Bituca direto. Ele me disse: ‘Gosto tanto de tudo que deixo na sua mão. Veja aí o que você quer fazer’”, conta a cantora.

Mônica ouviu novamente os discos de Milton e apresentou sua lista ao pianista. “Entraram duas que não são de Bituca, mas foram gravadas por ele e são muito marcantes para nós. Uma delas, Paixão e fé, eu havia gravado com André. Já Casamiento de negros, conheci na voz do Milton”, conta, referindo-se à canção do repertório da chilena Violeta Parra, faixa do disco Clube da Esquina 2 (1978). Sintomaticamente, um dos números que mais arrebatou o público foi a música justamente intitulada Paixão e fé (de Tavinho Moura e Fernando Brant, 1977), cantada em feitio de oração.

O roteiro começa com A lua girou (tema de domínio público adaptado por Milton Nascimento em 1976). A seguir são apresentados Noites do sertão (de Milton Nascimento e Tavinho Moura) e Saudade dos aviões da Panair (Conversando no bar) (de Milton Nascimento e Fernando Brant, 1974).

A quarta música é A terceira margem do rio (de Milton Nascimento e Caetano Veloso), número que embutiu leitura de trecho do conto também intitulado A terceira margem do rio, lançado no livro de Guimarães Rosa, “Pequenas estórias” (1962)

A seguir, vem Canção amiga, poema de Carlos Drummond de Andrade musicado por Milton Nascimento.

As duas músicas que se sucedem já foram mencionadas: Casamiento de negros, tema tradicional adaptado por Violeta Parra e Polo Cabrera e Paixão e fé (de Tavinho Moura e Fernando Brant)

As três músicas apresentadas a seguir foram Milagre dos peixes (de Milton Nascimento e Fernando Brant, Credo (de Milton Nascimento e Fernando Brant, com citação de San Vicente) e Paula e Bebeto (de Milton Nascimento e Caetano Veloso, 1975).

Um ponto alto do roteiro foi a interpretação de Morro velho (Milton Nascimento), em que Mônica canta com forte dramaticidade a saga ruralista dessa composição, que expõe o apartheid social existente no Brasil.

O roteiro de Milton desembocou em Dorival Caymmi (1914 – 2008), outro pilar da música brasileira. O fecho com Acalanto (1957), em tom terno e progressivamente sussurrante, acarinhou o público em registro que sublinhou o caráter ritualístico da celebração da obra de Milton Nascimento por Mônica Salmaso e André Mehmari.

Em que pese todo o tom ritualístico da obra do compositor e do canto da intérprete, o show Milton jamais soou pesado. E cabe ressaltar que, em cena, André Mehmari jamais se portou como o pianista acompanhante da cantora.

Em perfeita sintonia com Salmaso, o pianista é também um artista, que cria e faz de cada tema uma pequena suíte que embute citações de músicas como Ponta de areia (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1974), por exemplo.

No bis, para citar outro exemplo, Mehmari emergiu com citação do samba Águas de março (Antonio Carlos Jobim, 1972, quando Salmaso cantava Pescaria (Canoeiro) (Dorival Caymmi, 1944), música gravada por Milton em 1969 no terceiro álbum do artista.

Vale a pena esperar pelo disco a ser lançado pela Biscoito Fino. Enquanto o disco não vem, aconselho-os a ouviram suas músicas pelo You Tube.

Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com  


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Direção e Editoria
Irene Serra