01/04/2022
Ano 25

Semana 1.270







 
ARQUIVO
de
MÚSICA

 

 

 

 




A História das letras de música da MPB



Cândido Luiz de Lima Fernandes




1.Cajuína (Caetano Veloso)

A letra de “Cajuína” versa sobre o tropicalista piauiense Torquato Neto, um dos fundadores da Tropicália, tendo se destacado ao lado dos maiores nomes do movimento.

Ele estudou com Gilberto Gil em Salvador, e depois conheceu outras personalidades da cena artística soteropolitana, como Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia. Era um apaixonado por arte e defendia vários movimentos da contracultura, como o cinema marginal e a poesia concreta.

Foi o responsável por escrever o documento que oficializou e divulgou o Tropicalismo para a população comum, para além do círculo dos artistas.

Aos 28 anos, um dia após seu aniversário, Torquato Neto suicidou-se depois de muito sofrer por causa do regime militar e do exílio de seus amigos.

Segundo o próprio Caetano, apesar de ter ficado abalado, a notícia não o fez chorar imediatamente. O cantor e compositor sentiu o luto mesmo quando recebeu uma visita de Dr. Heli, pai de Torquato, tempos depois. Em Teresina, a visita acabou levando Caetano e Dr. Heli à casa da família de Torquato. Aí sim, ele desabou em choro. E conta: “A casa era cheia de fotografias de Torquato nas paredes. Ficamos os dois sozinhos, ele me consolando. (…) E cada coisa que ele fazia eu chorava. Fui para outra cidade do Nordeste e lá escrevi essa música”.

Desse relato todo, dá pra entender de onde vem cada trechinho da música. “Existirmos: A que será que se destina?”
Caetano abre com uma reflexão, que tem muito a ver com o tipo de raciocínio que a gente faz quando perde alguém. Na verdade, dá pra ver que a canção não é pra Torquato e sim para Dr. Heli (seu pai), que sofria em luto.

“Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina”

Quando Caetano conta essa história, lembra que o pai de Torquato trouxe uma rosa pequena do jardim e lhe entregou, emocionando-o totalmente.

E Dr. Heli é o homem lindo, cheio de doçura, que agora carrega a sina de ter perdido um filho.

“Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina”

São reflexões sobre chorar e sofrer naquela situação, pensando que a matéria da vida é fina, frágil e vai embora.

“E éramos olharmo-nos, intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina”

Caetano passa do subjetivo ao literal e lembra onde estava: em Teresina, tomando a cajuína (bebida típica, de caju) que Dr. Heli dividia com ele.

Com esse breve relato, o músico repete os versos e reconta a história, como se estivesse a digerindo. A música fica linda desse jeito mesmo, com essas duas estrofes repetidas.

2. Reconvexo (Caetano Veloso)

“Eu sou a chuva que lança a areia do Saara
Sobre os automóveis de Roma
Eu sou a sereia que dança, a destemida Iara
Água e folha da Amazônia

Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra
Você não me pega, você nem chega a me ver
Meu som te cega, careta, quem é você?
Que não sentiu o suingue de Henri Salvador
Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô
E que não riu com a risada de Andy Warhol
Que não, que não, e nem disse que não

Eu sou o preto norte-americano forte
Com um brinco de ouro na orelha
Eu sou a flor da primeira música a mais velha
Mais nova espada e seu corte

Eu sou o cheiro dos livros desesperados, sou Gitá gogoia
Seu olho me olha, mas não me pode alcançar
Não tenho escolha, careta, vou descartar
Quem não rezou a novena de Dona Canô
Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor
Quem não amou a elegância sutil de Bobô
Quem não é recôncavo e nem pode ser reconvexo”

A letra de Caetano Veloso faz afirmações e traz um saudosismo apaixonado à cultura brasileira. A história por trás é que um crítico musical havia pegado pesado com Caetano e outros artistas, mas elogiava músicos estrangeiros. Caetano, que defendia que a cultura brasileira deveria ser enaltecida e reconhecida, escreveu a letra como um manifesto, apontando que careta, na verdade, era o crítico. A letra faz referência a lugares como o continente africano (matriarca) e Salvador (Roma Negra) e também a pessoas (Dona cano, mãe do Caetano, Joãozinho Beija-Flor). Não nega a exclusão da cultura estrangeira, como se vê nas citações a Andy Wharhol e Henri Salvador. Essa é uma característica do movimento antropofágico, idealizado décadas antes desta composição. O título da música evoca o Recôncavo Baiano, onde fica Santo Amaro da Purificação, terra natal do compositor (“Quem não é recôncavo e nem pode ser reconvexo”).

3. Chico Buarque sob o heterônimo de Julinho da Adelaide

Julinho da Adelaide nasceu quando Chico Buarque passou a ser muito conhecido entre os censores do regime militar, na década de 70. Suas músicas eram proibidas somente porque levavam sua assinatura. A saída para burlar a censura foi a criação de um heterônimo. E deu certo. “Acorda amor”, “Jorge maravilha” e “Milagre brasileiro” passaram pela censura sem maiores problemas. Julinho chegou até a dar uma entrevista para o jornal Última Hora sobre sua carreira em ascensão. O jornalista e escritor Mário Prata, que o entrevistou em 1974, relembra esse episódio no artigo abaixo:


“Eu me lembro até da cara do Samuel Wainer quando eu disse que estava pensando em entrevistar o Julinho da Adelaide para o jornal dele. Ia ser um furo. Julinho da Adelaide, até então, não havia dado nenhuma entrevista. Poucas pessoas tinham acesso a ele. Nenhuma foto. Pouco se sabia de Adelaide. Setembro de 74. A coisa tava preta.

- Ele topa?

- Quem, o Julinho?

- Não, o Chico.

O Chico já havia topado e marcado para aquela noite na casa dos pais dele, na rua Buri. Demorou muitos uísques e alguns tapas para começar. Quando eu achava que estava tudo pronto o Chico disse que ia dar uma deitadinha. Subiu. Voltou uma hora depois.

Lá em cima, na cama de solteiro que tinha sido dele, criou o que restava do personagem.

Quando desceu, não era mais o Chico. Era o Julinho. A mãe dele não era mais a dona Maria Amélia, que balançava o gelo no copo de uísque. Adelaide era mais de balançar os quadris.

Julinho, ao contrário do Chico, não era tímido. Mas, como o criador, a criatura também bebia e fumava. Falava pelos cotovelos. Era metido a entender de tudo. Falou até de meningite nessa sua única entrevista a um jornalista brasileiro. Sim, diz a lenda que Julinho, depois, já no ostracismo, teria dado um depoimento ao brasilianista de Berkely, Matthew Shirts. Mas nunca ninguém teve acesso a esse material. Há também boatos que a Rádio Club de Uchôa, interior de São Paulo, teria uma gravação inédita. Adelaide, pouco antes de morrer, ainda criando palavras cruzadas para o Jornal do Brasil, afirmava que o único depoimento gravado do filho havia sido este, em setembro de 1974, na rua Buri, para o jornal Última Hora. Como sempre, a casa estava cheia. De livros, de idéias, de amigos. Além do professor Sérgio Buarque de Hollanda e dona Maria Amélia, me lembro da Cristina (irmã do Julinho, digo, Chico) e do Homerinho, da Miucha e do capitão Melchiades, então no Jornal da Tarde. Tinha mais irmãos (do Chico). Tenho quase certeza que o Álvaro e o Sergito (meu companheiro de faculdade de Economia) também estavam.

Quem já ouviu a fita percebeu que o nível etílico foi subindo pergunta a resposta. O pai Sérgio, compenetrado e cordial, andava em volta da mesa folheando uma enorme enciclopédia. De repente, ele a coloca na minha frente, aberta. Era em alemão e tinha a foto de uma negra. Para não interromper a gravação, foi lacônico, apontando com o dedo:

- Adelaide.

Essa foto, de uma desconhecida africana, depois de alguns dias, estaria estampada na Última Hora com a legenda: arquivo SBH. Julinho não se deixaria fotografar. Tinha uma enorme e deselegante cicatriz muito mal explicada no rosto. Naquelas duas horas e pouco que durou a entrevista e o porre, Chico inventava, a cada pergunta, na hora, facetas, passado e presente do Julinho. As informações jorravam. Foi ali que surgiu o irmão dele, o Leonel (nome do meu irmão), foi ali que descobrimos que a Adelaide tinha dado até para o Niemeyer, foi ali que descobrimos que o Julinho estava danado da vida com o Chico:

- O Chico Buarque quer aparecer às minhas custas.

Para mim, o que ficou, depois de quase 25 anos, foi o privilégio de ver o Chico em um total e super empolgado momento de criação. Até então, o Julinho era apenas um pseudônimo pra driblar a censura. Ali, naquela sala, criou vida. Baixou o santo mesmo. Não tínhamos nem trinta anos, a idade confessa, na época, do Julinho.

Hoje, se vivo fosse, Julinho teria 55 anos. Infelizmente morreu. Vítima da ditadura que o criou.

Há quem diga, porém, que, como James Dean e Marilyn Monroe, Julinho estaria vivo, morando em Batatais, e teria sido ele o autor do último sucesso do Chico, “A foto da capa”. Sei não, o estilo é mesmo o do Julinho. O conteúdo então, nem se fala”.


4. APESAR DE VOCÊ (Chico Buarque)

“Apesar de você” foi composta por Chico Buarque em 1970, no auge da ditadura militar. Foi lançada neste mesmo ano em um compacto simples, que por acaso, passou batido pela censura. Mas não demorou para que os militares se tocassem da ironia do compositor e o pior aconteceu. Sob a censura do governo Médici, o lançamento oficial da música acabou sendo realizado oito anos depois do compacto, no final do governo Geisel. Ela faz parte do disco intitulado “Chico Buarque”, lançado em 1978.

Quem faz uma leitura mais superficial da letra, pode pensar perfeitamente que se trata de um desabafo de alguém que está em um relacionamento tóxico, como se diz hoje em dia. Mas, não é preciso muita esperteza para notar os recados que Chico passa a cada estrofe da música. Acompanhe:

“Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não”

Já no primeiro verso da letra fica claro que o compositor não manda em nada e não tem como mudar essa situação, não pode nem reclamar. O “você” é claramente o regime da ditadura, na época representado pelo Presidente Médici, para quem a letra é direcionada.

“A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão”

Neste trecho, o compositor refere-se à situação do povo brasileiro, que “fala de lado” para não ser percebido e abaixa a cabeça com medo da repressão e da violência, típicas do governo da época. Médici (ou a ditadura), que inventou esse Estado (com letra maiúscula, representando o Governo), impondo a tristeza e a escuridão para o povo.

“Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão”

Nestes versos, o compositor menciona os vários crimes que foram “inventados” nos Atos Institucionais, que faziam inocentes serem presos por simplesmente expressarem uma opinião diferente da do Governo. O perdão que ele reclama de refere à falta de alternativa e defesa, que levava as pessoas ao cárcere, à tortura e à morte.

“Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar”
O refrão mostra que, mesmo diante de um cenário pavoroso, o governo não aniquilou a esperança de dias melhores. Em algum momento aquilo tudo irá acabar e a vida voltará a fluir normalmente. Repare que os versos “E a gente se amando sem parar” reforça a ideia de um relacionamento amoroso, uma artimanha para ludibriar a censura.

“Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar”
Neste trecho, o compositor deixa claro que toda a violência imposta ao povo não vai ficar barato, alguém vai pagar por isso. E vai “pagar dobrado”. Chega a ser uma espécie de ameaça, bem ousada para a época. O termo “samba no escuro” diz respeito às músicas censuradas.

“Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa”



Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email:
candidofernandes@hotmail.com


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Direção e Editoria
Irene Serra