A História das letras de música da MPB
Cândido Luiz de Lima Fernandes
1.Cajuína (Caetano Veloso)
A letra de
“Cajuína” versa sobre o tropicalista piauiense Torquato Neto, um dos fundadores
da Tropicália, tendo se destacado ao lado dos maiores nomes do movimento.
Ele estudou com Gilberto Gil em Salvador, e depois conheceu outras
personalidades da cena artística soteropolitana, como Caetano Veloso, Gal Costa
e Maria Bethânia. Era um apaixonado por arte e defendia vários movimentos da
contracultura, como o cinema marginal e a poesia concreta.
Foi o
responsável por escrever o documento que oficializou e divulgou o Tropicalismo
para a população comum, para além do círculo dos artistas.
Aos 28 anos,
um dia após seu aniversário, Torquato Neto suicidou-se depois de muito sofrer
por causa do regime militar e do exílio de seus amigos.
Segundo o
próprio Caetano, apesar de ter ficado abalado, a notícia não o fez chorar
imediatamente. O cantor e compositor sentiu o luto mesmo quando recebeu uma
visita de Dr. Heli, pai de Torquato, tempos depois. Em Teresina, a visita acabou
levando Caetano e Dr. Heli à casa da família de Torquato. Aí sim, ele desabou em
choro. E conta: “A casa era cheia de fotografias de Torquato nas paredes.
Ficamos os dois sozinhos, ele me consolando. (…) E cada coisa que ele fazia eu
chorava. Fui para outra cidade do Nordeste e lá escrevi essa música”.
Desse relato todo, dá pra entender de onde vem cada trechinho da música.
“Existirmos: A que será que se destina?” Caetano abre com uma reflexão, que
tem muito a ver com o tipo de raciocínio que a gente faz quando perde alguém. Na
verdade, dá pra ver que a canção não é pra Torquato e sim para Dr. Heli (seu
pai), que sofria em luto.
“Pois quando tu me deste a rosa pequenina Vi
que és um homem lindo e que se acaso a sina Do menino infeliz não se nos
ilumina”
Quando Caetano conta essa história, lembra que o pai de Torquato
trouxe uma rosa pequena do jardim e lhe entregou, emocionando-o totalmente.
E Dr. Heli é o homem lindo, cheio de doçura, que agora carrega a sina de ter
perdido um filho.
“Tampouco turva-se a lágrima nordestina Apenas a
matéria vida era tão fina”
São reflexões sobre chorar e sofrer naquela
situação, pensando que a matéria da vida é fina, frágil e vai embora.
“E
éramos olharmo-nos, intacta retina A cajuína cristalina em Teresina”
Caetano passa do subjetivo ao literal e lembra onde estava: em Teresina, tomando
a cajuína (bebida típica, de caju) que Dr. Heli dividia com ele.
Com
esse breve relato, o músico repete os versos e reconta a história, como se
estivesse a digerindo. A música fica linda desse jeito mesmo, com essas duas
estrofes repetidas.
2. Reconvexo (Caetano Veloso)
“Eu sou a chuva que lança a areia do Saara Sobre os automóveis de Roma
Eu sou a sereia que dança, a destemida Iara Água e folha da Amazônia
Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra Você não me pega, você nem
chega a me ver Meu som te cega, careta, quem é você? Que não sentiu o
suingue de Henri Salvador Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô E que
não riu com a risada de Andy Warhol Que não, que não, e nem disse que não
Eu sou o preto norte-americano forte Com um brinco de ouro na orelha
Eu sou a flor da primeira música a mais velha Mais nova espada e seu corte
Eu sou o cheiro dos livros desesperados, sou Gitá gogoia Seu olho me
olha, mas não me pode alcançar Não tenho escolha, careta, vou descartar
Quem não rezou a novena de Dona Canô Quem não seguiu o mendigo Joãozinho
Beija-Flor Quem não amou a elegância sutil de Bobô Quem não é recôncavo e
nem pode ser reconvexo”
A letra de Caetano Veloso faz afirmações e traz
um saudosismo apaixonado à cultura brasileira. A história por trás é que um
crítico musical havia pegado pesado com Caetano e outros artistas, mas elogiava
músicos estrangeiros. Caetano, que defendia que a cultura brasileira deveria ser
enaltecida e reconhecida, escreveu a letra como um manifesto, apontando que
careta, na verdade, era o crítico. A letra faz referência a lugares como o
continente africano (matriarca) e Salvador (Roma Negra) e também a pessoas (Dona
cano, mãe do Caetano, Joãozinho Beija-Flor). Não nega a exclusão da cultura
estrangeira, como se vê nas citações a Andy Wharhol e Henri Salvador. Essa é uma
característica do movimento antropofágico, idealizado décadas antes desta
composição. O título da música evoca o Recôncavo Baiano, onde fica Santo Amaro
da Purificação, terra natal do compositor (“Quem não é recôncavo e nem pode ser
reconvexo”).
3. Chico Buarque sob o heterônimo de Julinho da
Adelaide
Julinho da Adelaide nasceu quando Chico Buarque passou
a ser muito conhecido entre os censores do regime militar, na década de 70. Suas
músicas eram proibidas somente porque levavam sua assinatura. A saída para
burlar a censura foi a criação de um heterônimo. E deu certo. “Acorda amor”,
“Jorge maravilha” e “Milagre brasileiro” passaram pela censura sem maiores
problemas. Julinho chegou até a dar uma entrevista para o jornal Última Hora
sobre sua carreira em ascensão. O jornalista e escritor Mário Prata, que o
entrevistou em 1974, relembra esse episódio no artigo abaixo:
“Eu me lembro até da cara do Samuel Wainer quando eu disse que estava
pensando em entrevistar o Julinho da Adelaide para o jornal dele. Ia ser um
furo. Julinho da Adelaide, até então, não havia dado nenhuma entrevista. Poucas
pessoas tinham acesso a ele. Nenhuma foto. Pouco se sabia de Adelaide. Setembro
de 74. A coisa tava preta.
- Ele topa?
- Quem, o Julinho?
-
Não, o Chico.
O Chico já havia topado e marcado para aquela noite na casa
dos pais dele, na rua Buri. Demorou muitos uísques e alguns tapas para começar.
Quando eu achava que estava tudo pronto o Chico disse que ia dar uma deitadinha.
Subiu. Voltou uma hora depois.
Lá em cima, na cama de solteiro que tinha
sido dele, criou o que restava do personagem.
Quando desceu, não era mais
o Chico. Era o Julinho. A mãe dele não era mais a dona Maria Amélia, que
balançava o gelo no copo de uísque. Adelaide era mais de balançar os quadris.
Julinho, ao contrário do Chico, não era tímido. Mas, como o criador, a
criatura também bebia e fumava. Falava pelos cotovelos. Era metido a entender de
tudo. Falou até de meningite nessa sua única entrevista a um jornalista
brasileiro. Sim, diz a lenda que Julinho, depois, já no ostracismo, teria dado
um depoimento ao brasilianista de Berkely, Matthew Shirts. Mas nunca ninguém
teve acesso a esse material. Há também boatos que a Rádio Club de Uchôa,
interior de São Paulo, teria uma gravação inédita. Adelaide, pouco antes de
morrer, ainda criando palavras cruzadas para o Jornal do Brasil,
afirmava que o único depoimento gravado do filho havia sido este, em setembro de
1974, na rua Buri, para o jornal Última Hora. Como sempre, a casa
estava cheia. De livros, de idéias, de amigos. Além do professor Sérgio Buarque
de Hollanda e dona Maria Amélia, me lembro da Cristina (irmã do Julinho, digo,
Chico) e do Homerinho, da Miucha e do capitão Melchiades, então no Jornal da
Tarde. Tinha mais irmãos (do Chico). Tenho quase certeza que o Álvaro e o
Sergito (meu companheiro de faculdade de Economia) também estavam.
Quem
já ouviu a fita percebeu que o nível etílico foi subindo pergunta a resposta. O
pai Sérgio, compenetrado e cordial, andava em volta da mesa folheando uma enorme
enciclopédia. De repente, ele a coloca na minha frente, aberta. Era em alemão e
tinha a foto de uma negra. Para não interromper a gravação, foi lacônico,
apontando com o dedo:
- Adelaide.
Essa foto, de uma desconhecida
africana, depois de alguns dias, estaria estampada na Última Hora com a
legenda: arquivo SBH. Julinho não se deixaria fotografar. Tinha uma enorme e
deselegante cicatriz muito mal explicada no rosto. Naquelas duas horas e pouco
que durou a entrevista e o porre, Chico inventava, a cada pergunta, na hora,
facetas, passado e presente do Julinho. As informações jorravam. Foi ali que
surgiu o irmão dele, o Leonel (nome do meu irmão), foi ali que descobrimos que a
Adelaide tinha dado até para o Niemeyer, foi ali que descobrimos que o Julinho
estava danado da vida com o Chico:
- O Chico Buarque quer aparecer às
minhas custas.
Para mim, o que ficou, depois de quase 25 anos, foi o
privilégio de ver o Chico em um total e super empolgado momento de criação. Até
então, o Julinho era apenas um pseudônimo pra driblar a censura. Ali, naquela
sala, criou vida. Baixou o santo mesmo. Não tínhamos nem trinta anos, a idade
confessa, na época, do Julinho.
Hoje, se vivo fosse, Julinho teria 55
anos. Infelizmente morreu. Vítima da ditadura que o criou.
Há quem diga,
porém, que, como James Dean e Marilyn Monroe, Julinho estaria vivo, morando em
Batatais, e teria sido ele o autor do último sucesso do Chico, “A foto da capa”.
Sei não, o estilo é mesmo o do Julinho. O conteúdo então, nem se fala”.
4. APESAR DE VOCÊ (Chico Buarque)
“Apesar de você”
foi composta por Chico Buarque em 1970, no auge da ditadura militar. Foi lançada
neste mesmo ano em um compacto simples, que por acaso, passou batido pela
censura. Mas não demorou para que os militares se tocassem da ironia do
compositor e o pior aconteceu. Sob a censura do governo Médici, o lançamento
oficial da música acabou sendo realizado oito anos depois do compacto, no final
do governo Geisel. Ela faz parte do disco intitulado “Chico Buarque”, lançado em
1978.
Quem faz uma leitura mais superficial da letra, pode pensar
perfeitamente que se trata de um desabafo de alguém que está em um
relacionamento tóxico, como se diz hoje em dia. Mas, não é preciso muita
esperteza para notar os recados que Chico passa a cada estrofe da música.
Acompanhe:
“Hoje você é quem manda Falou, tá falado Não tem
discussão, não”
Já no primeiro verso da letra fica claro que o compositor
não manda em nada e não tem como mudar essa situação, não pode nem reclamar. O
“você” é claramente o regime da ditadura, na época representado pelo Presidente
Médici, para quem a letra é direcionada.
“A minha gente hoje anda
Falando de lado E olhando pro chão, viu Você que inventou esse estado E
inventou de inventar Toda a escuridão”
Neste trecho, o compositor
refere-se à situação do povo brasileiro, que “fala de lado” para não ser
percebido e abaixa a cabeça com medo da repressão e da violência, típicas do
governo da época. Médici (ou a ditadura), que inventou esse Estado (com letra
maiúscula, representando o Governo), impondo a tristeza e a escuridão para o
povo.
“Você que inventou o pecado Esqueceu-se de inventar O
perdão”
Nestes versos, o compositor menciona os vários crimes que foram
“inventados” nos Atos Institucionais, que faziam inocentes serem presos por
simplesmente expressarem uma opinião diferente da do Governo. O perdão que ele
reclama de refere à falta de alternativa e defesa, que levava as pessoas ao
cárcere, à tortura e à morte.
“Apesar de você Amanhã há de ser
Outro dia Eu pergunto a você Onde vai se esconder Da enorme euforia
Como vai proibir Quando o galo insistir Em cantar Água nova brotando
E a gente se amando Sem parar” O refrão mostra que, mesmo diante de um
cenário pavoroso, o governo não aniquilou a esperança de dias melhores. Em algum
momento aquilo tudo irá acabar e a vida voltará a fluir normalmente. Repare que
os versos “E a gente se amando sem parar” reforça a ideia de um relacionamento
amoroso, uma artimanha para ludibriar a censura.
“Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento Vou cobrar com juros, juro Todo esse amor reprimido
Esse grito contido Este samba no escuro Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza De desinventar Você vai pagar e é dobrado Cada
lágrima rolada Nesse meu penar” Neste trecho, o compositor deixa claro que
toda a violência imposta ao povo não vai ficar barato, alguém vai pagar por
isso. E vai “pagar dobrado”. Chega a ser uma espécie de ameaça, bem ousada para
a época. O termo “samba no escuro” diz respeito às músicas censuradas.
“Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Inda pago pra ver O
jardim florescer Qual você não queria Você vai se amargar Vendo o dia
raiar Sem lhe pedir licença E eu vou morrer de rir Que esse dia há de
vir Antes do que você pensa”
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com
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Direção e Editoria
Irene Serra |