01/10/2025
Ano 29
Semana 1.477





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de
MÚSICA



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O novo show de Maria Bethânia em comemoração aos 60 anos de carreira



Cândido Luiz de Lima Fernandes


O show “60 anos de carreira” é um dos melhores espetáculos da trajetória da intérprete nos palcos. Assim como Ney Matogrosso, Maria Bethânia nunca fez show calcado em sucessos, mas em um conceito. Seria fácil para a cantora ganhar a plateia de cara com hits infalíveis como “Olhos nos olhos” (Chico Buarque, 1976), “Explode coração” (Gonzaguinha, 1978), “Sonho meu” (Dona Ivone Lara e Delcio Carvalho, 1978) e “Grito de alerta” (Gonzaguinha, 1979). Mas que nada! Bethânia sempre vai pelo caminho mais difícil porque sabe que o séquito que a segue é exigente e inteligente. O show “60 anos de carreira” é dirigido e roteirizado pela própria Maria Bethânia, senhora da cena e das palavras, costuradas com engenhosidade. Dona do dom e das próprias vontades imperativas.

Aos 79 anos, com a voz grave e quente tinindo na estreia nacional da turnê na noite de 6 de setembro, na casa Vivo Rio (RJ), Maria Bethânia mostrou que segue em progressão infinita neste show que, embora esteja alicerçado nos cânones teatrais dos espetáculos em que a intérprete mixa música e textos poéticos, também avança na sonoridade enquanto dá conta de resumir seis décadas de palco e disco sem didatismos e trivialidades, mas com emblemas justificáveis como “Rosa dos ventos” (Chico Buarque, 1970), música-título do show de 1971 que consagrou a receita teatral experimentada pela artista desde 1967.

Calcada na pulsação dos sopros e dos metais, a direção musical de Pedro Guedes – também responsável pelos arranjos em função dividida com os músicos Jorge Helder (baixo e bandolim) Thiago Gomes (teclados e guitarra) – renovou a sonoridade dos shows da artista, ecoando a estética orquestrada por Lucas Nunes no espetáculo anterior “Caetano & Bethânia” (2024 / 2025), com o qual Bethânia percorreu arenas e estádios do Brasil ao lado de Caetano Veloso.

Responsável por abrir o show com citação vocal de “Iansã” (Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1972), antes da entrada de Bethânia em cena, o fantástico trio de vocalistas – Fael Magalhães, Janeh Magalhães e Jenni Rocha – também marcou forte presença, soando como outra herança da turnê com Caetano.

O som da banda resultou vibrante como o canto da artista, valorizando números como o rock “Podres poderes” (Caetano Veloso, 1984) com acento black. Cantada por Bethânia somente em 1985, no show de 20 anos de carreira, o rock de Caetano deu no atual espetáculo o toque político necessário no Brasil polarizado de 2025.

O show estreou quente. Os metais de Marcelo Martins (sax tenor) e Jessé Sadoc (trompete e flugelhorn) sopraram o bafejo quente do soul em músicas que reverberaram “A cena muda” (1974), um dos shows mais marcantes da trajetória de Bethânia nos palcos. Foi em “A cena muda” que Bethânia soltou pela primeira vez “Gás neon” (1974), angustiado flash urbano do cancioneiro de Gonzaguinha (1945 – 1991), compositor relevante na discografia da intérprete. “Gás neon” reapareceu na cena de 2025 em contraste com a pisada rascante e sertaneja do baião “Taturano” (Caetano Veloso sobre texto de Chico de Assis, 1974), outra lembrança de “A cena muda”, revivida com o toque da viola de Paulo Dáfilin e com a citação original de “Galope” (Gonzaguinha, 1974).

Bethânia inicia o show recitando o poema “Sete mil vezes” (Caetano Veloso, 1981) e cantando a seguir a belíssima composição de Milton Nascimento e Fernando Brant , “Canções e Momentos” (1986): “Eu só sei que há momentos que se casam com canção. De fazer tal casamento vive a minha profissão”. Emenda com “Gás neon” (Gonzaguinha, 1974) “Podres poderes” (Caetano Veloso, 1984). Um dos pontos altos do show é “Baioque” (Chico Buarque, 1972): “Quando eu canto, que se cuide quem não for meu irmão”, que Bethânia canta com força, antes de se perfilar em “Ofá” (Roberto Mendes e Jota Velloso, 1988), uma das muitas surpresas de roteiro que nunca escorregou no óbvio e que algumas vezes se banhou no mar da ancestralidade afro-indígena.

A seguir recita “A queda do céu” (texto de Davi Kopenawa e Bruce Albert) e transita com naturalidade entre as urbanidades contemporâneas e as paisagens rurais do Brasil caboclo do sertão e das folhas, saudadas em “Kirimurê” (Jota Velloso, 2006). Depois de recitar “Água viva” (texto de Clarice Lispector), canta “Encouraçado” (Sueli Costa e Tite de Lemos, 1972), “Resposta” (Maysa, 1956), “Demoníaca” (Sueli Costa e Vitor Martins, 1974) e “Taturano” (Caetano Veloso sobre texto de Chico de Assis, 1974), finalizando com a citação de “Galope” (Gonzaguinha, 1974).

Visível tanto no elegante figurino branco de Gilda Midani (adornado com acessórios dourados no segundo ato) quanto nas imagens projetadas no telão com requinte, sob direção visual de Otávio Juliano, a fidelidade do show à essência e à ideologia de Maria Bethânia foi exemplificada no bloco feminino aberto com a récita do texto “Lugar (Fragmentos”), de Herberto Helder.

“As mulheres têm uma roseira espalhada no ventre. Uma quente roseira”, poetizou Bethânia antes de exaltar a delícia de ser mulher em “O lado quente do ser” (Marina Lima, 1980), outra boa surpresa do roteiro.

Na sequência, Bethânia emendou uma canção sensual com balada romântica – “Cheiro de amor” (Jota Moraes, Duda Mendonça, Paulo Sergio Vale e Ribeiro, 1979) e “Olha” (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1975), esta rebobinada na trilha sonora da novela “Vale tudo” (2025) na gravação feita por Bethânia em 1993 – em bloco que serviu como válvula de escape para a parte da plateia que ansiava por sucessos. Um deles, inesperado porque dissociado do canto de Bethânia, foi o “Samba do grande amor “(Chico Buarque, 1983), cantado em número em que a banda roçou o suingue de um salão de gafieira.

Após apresentar a banda e antes do interlúdio que separa os dois atos, com o toque instrumental de “Caboclinha (A boneca de barro)” (Heitor Villa-Lobos, 1922), “Maracatu” (Egberto Gismonti, 1978) e do samba “Flor de lis (Djavan, 1976), Bethânia cruzou o oceano e entrou nas águas de além-mar com o canto de um fado ligeiro (presumivelmente) inédito de Pedro Abrunhosa, “Se não te vejo”, número em que o bandolim tocado por Jorge Helder soou com a alma de uma guitarra portuguesa. Detalhe curioso: trata-se do terceiro show em 13 anos que Bethânia encerra o primeiro ato com música do compositor português Pedro Abrunhosa.

No segundo ato, aberto com a linda toada “Tocando em frente” (Almir Sater e Renato Teixeira, 1990), Bethânia reiterou que faz da canção um auto de fé ao dar voz ao congado “Sete trovas “(Consuelo de Paula, Etel Frota e Rubens Nogueira, 2004) e ao saudar “Iemanjá Rainha do mar “(Pedro Amorim e Paulo César Pinheiro, 2006), mergulhando no álbum “Mar de Sophia” (2006), também lembrado com “Beira mar” (Roberto Mendes e José Carlos Capinan, 2006).

No segundo ato, as palmas ritmadas do público também afiaram “Fé cega, faca amolada” (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1974), reminiscência da turnê do grupo Os Doces Bárbaros (1976).

Sempre distante da rota dos hits triviais, o roteiro do show “60 anos de carreira” foi pensado pela cantora para seguidores que conhecem a trajetória da artista impulsionada em fevereiro de 1965 na cena do teatralizado show “Opinião” (1964 / 1965), de cujo repertório Bethânia pinçou o samba “Diz que fui por aí “(Zé Kétti e Hortênsio Rocha, 1964), levado em cadência suave.

As projeções de imagens de ondas revoltas captadas por Philip Thurston reforçaram a sensação de que o público estava voluntariamente à mercê do barco conduzido por Bethânia com a autonomia e a sabedoria dos mestres. Inédita de Chico César, “Eu mais ela” aprofundou o mergulho no amor de mulher que também banha o show “60 anos de carreira”.

Ao entrar no mar bravio das paixões, Bethânia agitou o público ao dar voz a uma grande canção de Angela Ro Ro, “Mares da Espanha” (1979), inédita na voz da intérprete. Foi quando a intensidade habitual da artista arrepiou a plateia em um dos momentos mais fortes do espetáculo. Na sequência, veio mais uma canção de Ro Ro, “Gota de sangue” (1979), esta cantada em dueto e voz e piano, o de Jonatan Harold, jovem músico arregimentado para a big banda que inclui o guitarrista Pedro Sá.

Na sequência, a belíssima “Mar e lua” (Chico Buarque, 1980) manteve a tensão dramática do show, também preservada no canto da “Balada do lado sem luz”, música de Gilberto Gil lançada por Bethânia no álbum “Pássaro proibido” (1976).

A récita de trecho de “Genipapo absoluto” (Caetano Veloso, 1989) reiterou que, para Maria Bethânia, cantar é mais do que lembrar. É tudo aquilo e um pouco mais. E Bethânia lembrou de Nana Caymmi (1941 – 2025), cantora irmã na densidade emocional com a récita do texto “Vozes/A voz de Nana” (Eucanaã Ferraz) e o canto de “Sussuarana” (Heckel Tavares e Luiz Peixoto, 1928), a toada melancólica que Bethânia interpretou com Nana no disco e show ” Brasileirinho” (2003), trabalho cujo universo temático foi bastante evocado neste “60 anos de carreira” pelas músicas e textos sobre as florestas e as fontes límpidas de um Brasil rural dizimado pela ganância do bicho homem, mas paradoxalmente resistente, como sentenciou a intérprete no canto de “A força que nunca seca” (Chico César e Vanessa da Mata, 1999).

Veio então mais uma homenagem póstuma, “Palavras de Rita” (2025), música inédita composta por Roberto de Carvalho a partir de texto de Rita Lee (1947 – 2023) endereçado pela roqueira a Bethânia.

É impressionante com as palavras poéticas de Rita soaram como a mais completa tradução de Bethânia (“Eu, hermafrodita / Da água respirei, a vida / No sangue que bebi, o soro / Nos ares explodi, em choro / Da gula que comi, a fome / Da fêmea que nasci, homem / Eu me transformei, em mim / Do Deus que duvidei, o sim / Das mortes que vivi, o além / Dos vícios que virei, refém / Dos bichos que sou, felina / Na velha que estou, menina”) e como a música de Roberto de Carvalho captou o espírito do repertório de Bethânia.

“Palavras de Rita” se impôs como a grande novidade do show dos 60 anos de carreira da cantora ao lado de empolgante samba, “Vera Cruz”, em que Xande de Pilares e Paulo César Feital também traduzem o espírito inquieto de Bethânia em versos inspirados como “Sou pilintra, viro Zé”.

Bethânia finalizou o samba com citação de “Carcará” (João do Vale e José Cândido), a música que a projetou em escala nacional há 60 anos na arena do espetáculo “Opinião” (1964 / 1965).

Ao sair do palco com o brado “Pega, mata e come”, antes de voltar para o bis em que cantou o refrão do samba-enredo “Maria Bethânia, a menina dos olhos de Oyá” (Alemão do Cavaco, Almyr, Cadu, Lacyr D Mangueira, Paulinho Bandolim e Renan Brandão, 2015) e o samba de roda ”Reconvexo” (Caetano Veloso, 1989), foi como se a intérprete atestasse para a posteridade que a paixão e a ideologia ainda são as mesmas de 1965, ainda que em progressão contínua entre os ares do Brasil caboclo e os gases urbanos das paixões vividas nos mares bravios e em terra firme.

E o fato é que, ao fim, o show se impôs como um dos melhores espetáculos de Maria Bethânia, artista que ama os abismos, as torrentes, os desertos e que, ao longo desses gloriosos 60 anos, somente foi aonde a levaram os próprios passos.
 

Cândido Luiz de Lima Fernandes é
economista e professor universitário em Belo Horizonte;
email: candidofernandes@hotmail.com





Direção e Editoria
Irene Serra
Revista Rio Total