O novo show de Maria Bethânia em comemoração aos 60 anos de carreira

Cândido Luiz de Lima Fernandes
O show “60 anos de carreira” é um dos melhores espetáculos da
trajetória da intérprete nos palcos. Assim como Ney Matogrosso, Maria Bethânia
nunca fez show calcado em sucessos, mas em um conceito. Seria fácil para a
cantora ganhar a plateia de cara com hits infalíveis como “Olhos nos olhos”
(Chico Buarque, 1976), “Explode coração” (Gonzaguinha, 1978), “Sonho meu” (Dona
Ivone Lara e Delcio Carvalho, 1978) e “Grito de alerta” (Gonzaguinha, 1979). Mas
que nada! Bethânia sempre vai pelo caminho mais difícil porque sabe que o
séquito que a segue é exigente e inteligente. O show “60 anos de carreira” é
dirigido e roteirizado pela própria Maria Bethânia, senhora da cena e das
palavras, costuradas com engenhosidade. Dona do dom e das próprias vontades
imperativas.
Aos 79 anos, com a voz grave e quente tinindo na estreia
nacional da turnê na noite de 6 de setembro, na casa Vivo Rio (RJ), Maria
Bethânia mostrou que segue em progressão infinita neste show que, embora esteja
alicerçado nos cânones teatrais dos espetáculos em que a intérprete mixa música
e textos poéticos, também avança na sonoridade enquanto dá conta de resumir seis
décadas de palco e disco sem didatismos e trivialidades, mas com emblemas
justificáveis como “Rosa dos ventos” (Chico Buarque, 1970), música-título do
show de 1971 que consagrou a receita teatral experimentada pela artista desde
1967.
Calcada na pulsação dos sopros e dos metais, a direção musical de Pedro
Guedes – também responsável pelos arranjos em função dividida com os músicos
Jorge Helder (baixo e bandolim) Thiago Gomes (teclados e guitarra) – renovou a
sonoridade dos shows da artista, ecoando a estética orquestrada por Lucas Nunes
no espetáculo anterior “Caetano & Bethânia” (2024 / 2025), com o qual Bethânia
percorreu arenas e estádios do Brasil ao lado de Caetano Veloso.
Responsável
por abrir o show com citação vocal de “Iansã” (Caetano Veloso e Gilberto Gil,
1972), antes da entrada de Bethânia em cena, o fantástico trio de vocalistas –
Fael Magalhães, Janeh Magalhães e Jenni Rocha – também marcou forte presença,
soando como outra herança da turnê com Caetano.
O som da banda resultou
vibrante como o canto da artista, valorizando números como o rock “Podres
poderes” (Caetano Veloso, 1984) com acento black. Cantada por Bethânia somente
em 1985, no show de 20 anos de carreira, o rock de Caetano deu no atual
espetáculo o toque político necessário no Brasil polarizado de 2025.
O show
estreou quente. Os metais de Marcelo Martins (sax tenor) e Jessé Sadoc (trompete
e flugelhorn) sopraram o bafejo quente do soul em músicas que reverberaram “A
cena muda” (1974), um dos shows mais marcantes da trajetória de Bethânia nos
palcos. Foi em “A cena muda” que Bethânia soltou pela primeira vez “Gás neon”
(1974), angustiado flash urbano do cancioneiro de Gonzaguinha (1945 – 1991),
compositor relevante na discografia da intérprete. “Gás neon” reapareceu na cena
de 2025 em contraste com a pisada rascante e sertaneja do baião “Taturano”
(Caetano Veloso sobre texto de Chico de Assis, 1974), outra lembrança de “A cena
muda”, revivida com o toque da viola de Paulo Dáfilin e com a citação original
de “Galope” (Gonzaguinha, 1974).
Bethânia inicia o show recitando o poema
“Sete mil vezes” (Caetano Veloso, 1981) e cantando a seguir a belíssima
composição de Milton Nascimento e Fernando Brant , “Canções e Momentos” (1986):
“Eu só sei que há momentos que se casam com canção. De fazer tal casamento vive
a minha profissão”. Emenda com “Gás neon” (Gonzaguinha, 1974) “Podres poderes”
(Caetano Veloso, 1984). Um dos pontos altos do show é “Baioque” (Chico Buarque,
1972): “Quando eu canto, que se cuide quem não for meu irmão”, que Bethânia
canta com força, antes de se perfilar em “Ofá” (Roberto Mendes e Jota Velloso,
1988), uma das muitas surpresas de roteiro que nunca escorregou no óbvio e que
algumas vezes se banhou no mar da ancestralidade afro-indígena.
A seguir
recita “A queda do céu” (texto de Davi Kopenawa e Bruce Albert) e transita com
naturalidade entre as urbanidades contemporâneas e as paisagens rurais do Brasil
caboclo do sertão e das folhas, saudadas em “Kirimurê” (Jota Velloso, 2006).
Depois de recitar “Água viva” (texto de Clarice Lispector), canta “Encouraçado”
(Sueli Costa e Tite de Lemos, 1972), “Resposta” (Maysa, 1956), “Demoníaca”
(Sueli Costa e Vitor Martins, 1974) e “Taturano” (Caetano Veloso sobre texto de
Chico de Assis, 1974), finalizando com a citação de “Galope” (Gonzaguinha, 1974).
Visível tanto no elegante figurino branco de Gilda Midani (adornado com
acessórios dourados no segundo ato) quanto nas imagens projetadas no telão com
requinte, sob direção visual de Otávio Juliano, a fidelidade do show à essência
e à ideologia de Maria Bethânia foi exemplificada no bloco feminino aberto com a
récita do texto “Lugar (Fragmentos”), de Herberto Helder.
“As mulheres têm
uma roseira espalhada no ventre. Uma quente roseira”, poetizou Bethânia antes de
exaltar a delícia de ser mulher em “O lado quente do ser” (Marina Lima, 1980),
outra boa surpresa do roteiro.
Na sequência, Bethânia emendou uma canção
sensual com balada romântica – “Cheiro de amor” (Jota Moraes, Duda Mendonça,
Paulo Sergio Vale e Ribeiro, 1979) e “Olha” (Roberto Carlos e Erasmo Carlos,
1975), esta rebobinada na trilha sonora da novela “Vale tudo” (2025) na gravação
feita por Bethânia em 1993 – em bloco que serviu como válvula de escape para a
parte da plateia que ansiava por sucessos. Um deles, inesperado porque
dissociado do canto de Bethânia, foi o “Samba do grande amor “(Chico Buarque,
1983), cantado em número em que a banda roçou o suingue de um salão de gafieira.
Após apresentar a banda e antes do interlúdio que separa os dois atos, com o
toque instrumental de “Caboclinha (A boneca de barro)” (Heitor Villa-Lobos,
1922), “Maracatu” (Egberto Gismonti, 1978) e do samba “Flor de lis (Djavan,
1976), Bethânia cruzou o oceano e entrou nas águas de além-mar com o canto de um
fado ligeiro (presumivelmente) inédito de Pedro Abrunhosa, “Se não te vejo”,
número em que o bandolim tocado por Jorge Helder soou com a alma de uma guitarra
portuguesa. Detalhe curioso: trata-se do terceiro show em 13 anos que Bethânia
encerra o primeiro ato com música do compositor português Pedro Abrunhosa.
No segundo ato, aberto com a linda toada “Tocando em frente” (Almir Sater e
Renato Teixeira, 1990), Bethânia reiterou que faz da canção um auto de fé ao dar
voz ao congado “Sete trovas “(Consuelo de Paula, Etel Frota e Rubens Nogueira,
2004) e ao saudar “Iemanjá Rainha do mar “(Pedro Amorim e Paulo César Pinheiro,
2006), mergulhando no álbum “Mar de Sophia” (2006), também lembrado com “Beira
mar” (Roberto Mendes e José Carlos Capinan, 2006).
No segundo ato, as palmas
ritmadas do público também afiaram “Fé cega, faca amolada” (Milton Nascimento e
Fernando Brant, 1974), reminiscência da turnê do grupo Os Doces Bárbaros (1976).
Sempre distante da rota dos hits triviais, o roteiro do show “60 anos de
carreira” foi pensado pela cantora para seguidores que conhecem a trajetória da
artista impulsionada em fevereiro de 1965 na cena do teatralizado show “Opinião”
(1964 / 1965), de cujo repertório Bethânia pinçou o samba “Diz que fui por aí
“(Zé Kétti e Hortênsio Rocha, 1964), levado em cadência suave.
As projeções
de imagens de ondas revoltas captadas por Philip Thurston reforçaram a sensação
de que o público estava voluntariamente à mercê do barco conduzido por Bethânia
com a autonomia e a sabedoria dos mestres. Inédita de Chico César, “Eu mais ela”
aprofundou o mergulho no amor de mulher que também banha o show “60 anos de
carreira”.
Ao entrar no mar bravio das paixões, Bethânia agitou o público ao
dar voz a uma grande canção de Angela Ro Ro, “Mares da Espanha” (1979), inédita
na voz da intérprete. Foi quando a intensidade habitual da artista arrepiou a
plateia em um dos momentos mais fortes do espetáculo. Na sequência, veio mais
uma canção de Ro Ro, “Gota de sangue” (1979), esta cantada em dueto e voz e
piano, o de Jonatan Harold, jovem músico arregimentado para a big banda que
inclui o guitarrista Pedro Sá.
Na sequência, a belíssima “Mar e lua” (Chico
Buarque, 1980) manteve a tensão dramática do show, também preservada no canto da
“Balada do lado sem luz”, música de Gilberto Gil lançada por Bethânia no álbum
“Pássaro proibido” (1976).
A récita de trecho de “Genipapo absoluto” (Caetano
Veloso, 1989) reiterou que, para Maria Bethânia, cantar é mais do que lembrar. É
tudo aquilo e um pouco mais. E Bethânia lembrou de Nana Caymmi (1941 – 2025),
cantora irmã na densidade emocional com a récita do texto “Vozes/A voz de
Nana” (Eucanaã Ferraz) e o canto de “Sussuarana” (Heckel Tavares e Luiz Peixoto,
1928), a toada melancólica que Bethânia interpretou com Nana no disco e show ”
Brasileirinho” (2003), trabalho cujo universo temático foi bastante evocado
neste “60 anos de carreira” pelas músicas e textos sobre as florestas e as
fontes límpidas de um Brasil rural dizimado pela ganância do bicho homem, mas
paradoxalmente resistente, como sentenciou a intérprete no canto de “A força que
nunca seca” (Chico César e Vanessa da Mata, 1999).
Veio então mais uma
homenagem póstuma, “Palavras de Rita” (2025), música inédita composta por
Roberto de Carvalho a partir de texto de Rita Lee (1947 – 2023) endereçado pela
roqueira a Bethânia.
É impressionante com as palavras poéticas de Rita soaram
como a mais completa tradução de Bethânia (“Eu, hermafrodita / Da água respirei,
a vida / No sangue que bebi, o soro / Nos ares explodi, em choro / Da gula que
comi, a fome / Da fêmea que nasci, homem / Eu me transformei, em mim / Do Deus
que duvidei, o sim / Das mortes que vivi, o além / Dos vícios que virei, refém /
Dos bichos que sou, felina / Na velha que estou, menina”) e como a música de
Roberto de Carvalho captou o espírito do repertório de Bethânia.
“Palavras de
Rita” se impôs como a grande novidade do show dos 60 anos de carreira da cantora
ao lado de empolgante samba, “Vera Cruz”, em que Xande de Pilares e Paulo César
Feital também traduzem o espírito inquieto de Bethânia em versos inspirados como
“Sou pilintra, viro Zé”.
Bethânia finalizou o samba com citação de “Carcará”
(João do Vale e José Cândido), a música que a projetou em escala nacional há 60
anos na arena do espetáculo “Opinião” (1964 / 1965).
Ao sair do palco com o
brado “Pega, mata e come”, antes de voltar para o bis em que cantou o refrão do
samba-enredo “Maria Bethânia, a menina dos olhos de Oyá” (Alemão do Cavaco,
Almyr, Cadu, Lacyr D Mangueira, Paulinho Bandolim e Renan Brandão, 2015) e o
samba de roda ”Reconvexo” (Caetano Veloso, 1989), foi como se a intérprete
atestasse para a posteridade que a paixão e a ideologia ainda são as mesmas de
1965, ainda que em progressão contínua entre os ares do Brasil caboclo e os
gases urbanos das paixões vividas nos mares bravios e em terra firme.
E o
fato é que, ao fim, o show se impôs como um dos melhores espetáculos de Maria
Bethânia, artista que ama os abismos, as torrentes, os desertos e que, ao longo
desses gloriosos 60 anos, somente foi aonde a levaram os próprios passos.
Cândido Luiz de Lima Fernandes é economista e professor universitário em
Belo Horizonte; email:
candidofernandes@hotmail.com

Direção e Editoria
Irene Serra
Revista Rio Total

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