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É preciso engolir espadas e vomitar fogo
(literatura fica por último...)
 (pintura de
Franz Kafka, por Chico Lopes)
Chico Lopes
Coisa temerária falar sobre Literatura para jovens.
Constata-se, naturalmente, o que é inevitável: que a maior parte do público não
tem a menor ideia do que um escritor faz e do que a vocação (mais que a
profissão) de escritor significa. Na verdade, depara-se com viciados em
televisão, minisséries, videogames, celulares, e fica-se meio sem saber o que
dizer. Mas, qualquer escritor que se disponha a fazer isso, atualmente, topará
com essas coisas. E terá que se medir com implacáveis dificuldades.
A
primeira – e a mais notável delas – é uma mistura de ignorância crassa com
cinismo. O que interessa é se o indivíduo que está ali, na frente, palestrando,
é um nome que foi veiculado pela tevê, se esteve no Instagram, se foi visto no
You Tube. Se assim for, pouco importa que esteja querendo falar de Literatura ou
da psicologia dos caranguejos – o que ele tem que fazer, para o público que só
consegue olhar numa direção, é entretê-lo. Se não o conseguir, estará perdido: a
ignorância vai se manifestar em termos de má vontade, gente que se levanta e vai
embora como se tivesse sido enganada (palestras desse gênero são, em geral,
gratuitas, mas o sujeito se irrita como se tivesse comprado um ingresso) ou,
pior, vaias, grossuras, risadas. Se há boa vontade, virão as perguntas – que,
por vezes, revelam uma indigência cultural de assombrar mesmo os mais
pessimistas ou uma inocência dolorosa, do tipo: “Como é que faço pra escrever um
livro e ficar famoso?”.
É terrível isso, porque revela que o sujeito mal
ouvia o que o escritor estava tentando dizer: que mal e mal existe essa
profissão num Brasil onde o que há, na melhor hipótese, são semialfabetizados
que detestam ler e onde mesmo os escritores famosos nada são, em termos de fama,
para a grande massa. Geralmente têm outras profissões, de onde procede o seu
sustento, e nem mesmo se arrisca a acreditar que possa sobreviver comercialmente
com seus livros.
O desejo desses jovens é um só - ficar conhecido, não
importando o trabalho que se tenha que fazer: o mérito, o sacrifício, não entra
em conta. A mídia, por interesses consumistas “democráticos”, negligencia o
mérito, as hierarquias naturais de talento das quais ninguém escapa, bombardeia
que tudo neste mundo é uma questão de oportunidade. Daí o serem todos submetidos
à lógica cruel do sistema: tudo fica reduzido a precisar fazer alguma coisa para
ser uma notoriedade. Nisso até as religiões caíram, com a transformação da
espiritualidade num meio de vencer na vida neste mundo que, nos livros mais
sérios sobre o assunto, é descrito como oposto à alma. É toda uma geração de
monstros sem cabeça que vem sendo criada, e na base da euforia, como se tudo
isso fosse muito natural, quando, na verdade, a perversidade é completa. Querem
ser usados, espremidos e jogados no lixo. A humilhação não os intimida. Sair na
tevê é tudo. Quem se opõe a isso é esquisito, otário. A possível nobreza das
recusas ou do silêncio indignado, impotente, de modo algum é considerada.
UM PERSONALISMO DOENTIO E O MACHADO DE KAFKA
Um personalismo doentio
é imposto e faz com que o escritor precise ser algo mais que um escritor para
interessar à sociedade do espetáculo – ele tem que ser um excêntrico dizendo
coisas contundentes e inverdades extravagantes mais do que oferecer um bom
trabalho em livro numa sociedade que é muito mais de valorizar capas de livros e
ler orelhas do que qualquer outra coisa. Sim, é preciso engolir espadas e
vomitar fogo.
A falta de sucesso popular é um componente quase inevitável da
atividade literária, se esta é realmente séria. Os livros são lançados com
esperanças e muito trabalho, muito sacrifício, mas não passam daquele “sucesso
de estima” de uma noite de autógrafos com poucos amigos e admiradores, algumas
vendas esparsas, mais nada. Em geral, o destino da maior parte desses livros é o
encalhe doméstico; a certa altura, o que o escritor faz é distribuir o que
restou lá por cortesia, para diminuir a pilha.
Se o sucesso popular é tudo
que um escritor deseja, nada é menos indicado do que a escrita literária séria
para a realização de seu sonho. Ele poderá até conquistar esse sucesso, mas verá
depressa que não há nada de muito meritório nele, pela superficialidade de seus
leitores, que em maioria adquiriram seu livro devido a alguma badalação
marqueteira que lhe foi necessário fazer, e devido às traições à sua realidade
que será doravante obrigado a empreender, a fim de manter seu relativo sucesso.
Os prêmios literários, que podem ser compensadores num sentido financeiro
imediato, se dissolvem rapidamente, no tempo voraz da mídia. É até difícil
alguém lembrar premiados daí a algum tempo.
Há uma incompatibilidade entre a
escrita empenhada e lúcida e a indústria cultural que nunca é analisada com a
devida profundidade, talvez porque o impasse tenha um significado mais profundo
e trágico do que se possa tolerar. O escritor, ao conseguir algum nome, na certa
acabará no sofá de alguma loura sorridente que fará o possível para torná-lo
palatável à sua audiência. Mas a maquininha não está interessada em Literatura,
nem nunca esteve, a não ser em redes educativas, vistas por pouquíssima gente –
televisão, Fellini bem resumiu, é um eletrodoméstico, tem que produzir
irrealidade o tempo todo, preencher uma programação com o que quer que seja,
entreter, distrair, triturar assuntos e simplificá-los ao máximo para o
entendimento de massa.
O ódio à complexidade pode ser percebido em qualquer
entrevista no qual o entrevistado seja um intelectual ou escritor disposto a
pensar, a revelar matizes, contradições, impasses – e isso se dá até nas
emissoras ditas culturais. O entrevistador se exaspera, porque vê correr o
tempo, quer preto no branco, respostas fáceis e assimiláveis pelos espectadores,
e assim, submetido, o entrevistado percebe que não pode dar um passo para a
elevação intelectual do público de modo algum e se rende. Esta rendição da
complexidade à fórmula simplória para massas é a maior tragédia cultural de
nosso tempo. A facilitação fica sendo facilitação eterna, proibida de dar o
passo seguinte de informar com mais sutileza e rigor.
A facilitação é
perversa. O mesmo processo, aliás, pode ser observado na defesa da leitura da
literatura calculista e vagabunda, feita só para entreter, como um passo inicial
no salto para leituras mais sérias e profundas. Não é verdade: o acostumado à
literatura rasa e comercial, ao procurar um autor mais sério, não encontrando a
facilidade de sempre, na qual se viciou, acaba é hostil ao pensamento matizado,
à complexidade natural e irreversível do mundo, e detestando autores que
rapidamente classificará como pedantes e chatos. A atitude básica da
televisão comercial, ao entrevistar um escritor, nunca é a de uma pessoa que
realmente lê, mas de alguma tia simpática e de instrução duvidosa que está feliz
porque um sobrinho ou um amigo lançou um livro e trata o assunto com aquele
primarismo bem-intencionado e simplório de quem acha que isso é uma proeza –
publicar um livro! O ato e o produto aparecem como fetiches ingênuos, como
façanhas, não se discute a questão, pouco importa o que se escreveu de fato.
Imagina-se, nesses círculos, com os quais os escritores, bem ou mal, terão que
compactuar algum dia (para divulgar o seu trabalho) que há um caminho simples e
linear do publicar um livro para vendê-lo, que há aí a realização de outro sonho
brasileiro, em que se misturam a malandragem e o deslumbramento de gente em
geral incomodada com as suas origens humildes: o de “ficar bem na vida”, o de
ser uma pessoa valorizada entre “doutores” e sumidades. A televisão jamais se
interessará pela verdade e o sofrimento que são indissociáveis da vida literária
– porque, acima de tudo, a maquininha é perita na confecção de miragens: mostra
sempre o esplendor dos fins sem mostrar a iniquidade dos meios.
E escritor
que é de fato escritor, se não puser o dedo na ferida da iniquidade social
onipresente, não terá feito nada. O dever de se opor às mentiras e facilidades
que a sociedade não para de oferecer para não olhar para si mesma e se
horrorizar com o que vê, é praticamente um compromisso sagrado de todo escritor
que não deseje se afundar no autodesprezo. Sempre será preciso lembrar Kafka e
seu machado. Ele disse: “livros têm que ser machados para rachar o mar gelado em
que vivemos.” Munidos desses machados, podemos nunca ser sucessos de mídia, mas
seremos capazes de honrar outra frase, a de Camus, que escreveu que “importa
mais ser consciente do que ser feliz”.
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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.
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Direção e Editoria
Irene Serra
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