16/11/2024
Ano 27
Semana 1.391

 




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Bram Stoker e o pesadelo do sexo vitoriano


Chico Lopes



Tenho certeza que a maioria das pessoas que viram o filme “Drácula de Bram Stoker”, realizado por Francis Ford Coppola em 1992, não leu o livro que lhe deu origem. E não é de espantar, porque o personagem clássico e estereotipado do Conde é o vampiro mais conhecido que existe, virou substantivo, e a indústria cultural, em filmes, gibis ou livros, aproveitou tanto a figura, tanto a diluiu, tanto a transformou e a utilizou conforme modas de época e lugares, a coisa tanto se disseminou e perverteu que pouca gente sabe que se trata de um personagem literário da era vitoriana.

Em 1922, ele foi o “Nosferatu” poético de Murnau, que se valeu do livro de Stoker, mas teve que mudar nomes para evitar um processo da família do autor. “Nosferatu” foi refeito com grande arte e beleza por Werner Herzog em 1979, numa versão-homenagem que considero até superior ao filme de Murnau. O cinema teve inúmeros Dráculas, sendo muito lembrado (e hoje acho que pouco visto) o hollywoodiano de Bela Lugosi, mas acho que, para a minha geração, o mais marcante foi mesmo o vivido por Christopher Lee nas produções sanguinolentas da Hammer.

Quando Coppola decidiu fazer seu filme, decidiu ir à raiz, filmar o livro, citado por muitos e conhecido por poucos. Fez um filme visualmente grandioso por um lado e corroído por outro por interpretações fraquíssimas de Keanu Reeves e Winona Ryder como Jonathan e Mina. Consagrou Gary Oldman no papel-título.

Pois bem: faz tempo que o mercado editorial brasileiro oferece esse “Drácula” de Stoker em formatos variados, até em pocket books, a preços acessíveis, e sempre com capas que têm um apelo comercial direto – numa delas, ressurge o próprio Bela Lugosi, e, noutra, vemos um quadro vitoriano do vampiro avançando sobre o pescoço de uma dama “Belle Epóque” circundado por uma moldura de pedra tumular. Nada é sutil nessas coisas, nem se pode esperar sutileza de um ícone da indústria cultural que já se manchou de “kitsch” quinhentas mil vezes. O público que responde a isso ou tem aquela sofisticação de quem curte o “camp” conscientemente ou se deixa contaminar pelo mau-gosto mesmo, até porque histórias de vampiros já fazem parte da vala comum da indústria cultural degenerada e, para esses leitores, os álibis da intelectualidade para apreciar coisas ruins sem se sentir diminuída não fazem a menor diferença.

Arrogância e ingenuidade do racionalismo

Quanto ao romance, a técnica de Stoker é revezar os pontos de vista dos personagens principais (e mesmo de alguns secundários) da trama através de depoimentos, gravações, diários etc., exagerando até nessa alternância de vozes. Dá a entender que aqueles vitorianos – a narrativa transcorre na Londres do século 19 – escreviam compulsivamente, queriam pateticamente explicar tudo, numa vertiginosa atração pela força do discurso racional, pelo cientificismo. A racionalidade se aguça e se mostra com toda a sua arrogância e sua ingenuidade ao lidar com um fenômeno absolutamente irracional. Quanto mais perplexidade, mais palavrório. Coppola adotou um tanto disso no filme – cartas foram aproveitadas em cenas de grande rebuscamento visual, sobrepostas a imagens de ação, narrando o filme com ares anacrônicos propositais.

O que é de fato interessante no romance de Stoker é o seu erotismo descabelado. Stoker era um subliterato esforçado, não mais, e fez de seu livro um torvelinho de adjetivos, diálogos pomposos e artificiais de fazer rir, dramalhão e pieguice, mas tinha um senhor material nas mãos. O assunto era sexo reprimido, que mais? Ao aterrissar em Londres, o velho morcego clichê vai atacar primeiramente Lucy, amiga de Mina, que tem na fila três pretendentes à sua mão e vive escrevendo a Mina cartas que dão a entender que os homens não lhe saem da cabeça – péssimo para uma dama vitoriana só “pensar naquilo”, e por isso Drácula é uma materialização tanto de seus desejos quanto das forças punitivas contra as quais este se debela. Uma mulher tão claramente desejosa de homens era uma coisa monstruosa, e, pela lógica repressiva, tinha que se deparar com um monstro que a um só tempo a satisfaria e a tornaria uma pária morta-viva.

É um ponto óbvio – qualquer estudo posterior mais cuidadoso e corajoso notou a correlação entre sexo e Drácula. Mas o erotismo se esparrama realmente por coisas que não foram lá muito comentadas, porque tampouco o livro era muito conhecido no Brasil. Drácula é como alguma coisa espiada pela fechadura, deixa todos agitados e loucos, por razões que vão do pavor ao fascínio com uma rapidez atordoante. A reação é procurar explicá-lo, situá-lo, classificá-lo, mas tudo que se obtém é um reforço consistente da superstição mais que do cientificismo, já que ele habita regiões emotivas e não racionais, fáceis e inteligíveis. Ele é interessantíssimo em suas metamorfoses, poético em suas aparições como névoa ao luar. É o mais puro Id, já que o livro é um banquete para freudianos, e as associações fálicas foram feitas tão insistentemente que a gente, entulhado de leituras psicanalíticas como ficamos neste século, tendemos a desdenhar tudo com um risinho sabido. Mas há ainda muita coisa realmente assustadora, fantasias paranóicas e sexuais que não são nada inocentes – há, por exemplo, uma constante vampirização de criancinhas, que Coppola reproduziu em seu filme, como se as fantasias pedófilas também rondassem, inquietantes, aquelas cabeças transtornadas. O horror ultrapassa os limites.

No filme de Coppola, Van Helsing, o caçador-protótipo de vampiros, foi vivido com um exagero de canastronice tão pronunciado de Anthony Hopkins que, por vezes, a gente ficava irritado com os abusos diretos do diretor. Hoje revista, a produção parece se sustentar mesmo é pela interpretação de Gary Oldman, que deu muito de si e se ajustou perfeitamente ao papel, e pela qualidade dos delírios visuais, só imagináveis e realizáveis por um diretor com grande orçamento. A Mina de Winona Ryder e o Jonathan de Keanu Reeves prejudicaram demais o filme, não se sustentam. O figurino de Eiko Ishioka e a música de Wojciech Kilar fazem milagres pela produção. A música, especialmente, tem uma pungência romântico/macabra, em tons a um só tempo mórbidos e sensuais, que provavelmente fez mais pelo filme que o trabalho de muitos dos atores de um elenco disparatado. Mal começa, entramos por completo na atmosfera. Deve ser das melhores trilhas de cinema já feitas, sem dúvida alguma.

Na verdade, o livro “Drácula de Bram Stoker” precisa ser lido como uma relíquia sociológica muito curiosa. É um grande livro ruim. Stoker, vivo hoje em dia, estaria nas fileiras de Stephen King, escritor de desvairada imaginação que tanto pode ter sutilezas quanto mergulhar no mais abjeto comercialismo estúpido para adolescentes que procuram banhos de sangue nos livros. A narrativa é quadrada, para os padrões de hoje em dia, mas é apta para satisfazer os leitores de best-sellers, que nunca exigem piruetas vanguardeiras nem se sentem na obrigação de entender as mutações pelas quais a estética literária passou desde a publicação do romance.

Mas esse grande livro ruim tem seu mérito: criou um mito. Não se pode dizer o mesmo de um sem-fim de livros bem-intencionados e escritos com muito mais talento, equilíbrio e sensibilidade.



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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.


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Irene Serra