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Highsmith e a monstruosa naturalidade do mundo
Chico Lopes
Em seus livros,
Patrícia Highsmith é perita em mostrar o cotidiano mais banal e inerme (às
vezes, ao lê-la, temos a impressão de que páginas e páginas se passaram sem que
acontecesse nada de relevante) e fazer com que, aos poucos, nos enredemos
completamente naqueles não-acontecimentos. Ela, na verdade, vai provando-nos com
muita astúcia ficcional que o que tomamos como banalidade, como a esmagadora
falta de sentido e de graça do cotidiano, pode ser um mar de estranhezas a que
seria necessário prestar mais atenção.
Outra virtude é que também consegue
sempre nos fazer ver a loucura pelo lado de dentro, já que seus personagens mais
pirados não são propriamente loucos, apenas seguem uma lógica peculiar que não
difere muito da nossa, exacerbam a fragmentação de suas personalidades e acabam
produzindo fantasmas que se voltam contra eles, como num pesadelo. Acho que ela
é capaz de descrever um passeio de carrinho em supermercado como uma coisa
inteiramente esquisita e perversa sem apelar para nada de tão convencionalmente
excêntrico. Pensam que isso é fácil de obter? É preciso muito talento. E é
preciso ser verdadeiramente excêntrico, como todo grande artista é.
Em “O
diário de Edith”, temos uma dona de casa americana a mais comum possível: ela
tem ideias liberais mais para a esquerda, escreve um jornal de província, tem um
marido também mais ou menos engajado nas mesmas causas, e até aí, tudo bem... O
problema é o filho de ambos, um “nerd” chatinho chamado Cliffie, típico produto
da overdose televisiva, insensível, monstruoso com a maior das naturalidades,
retrato de uma geração amoralizada e estupidificada pelo consumismo e também – é
preciso ressaltar – pela indiferença travestida de permissividade dos pais.
Edith e Brett representam bem o casal “modernoso”, vivem absorvidos pelas causas
sociais e se acham chiques, justos, tolerantes, “politicamente corretos”; mal
percebem como o filho, que destoa muito de ambos, é um produto de sua hipocrisia
ou dessa fatalidade irônica que faz com que os filhos saiam em geral
aparentemente tão diferentes dos pais, mas sejam como paródias tortas de suas
facetas inconscientes e menos assumidas, vindo, com seus atos miseráveis ou
cínicos, a acabar com as pretensões de superioridade e com a complacência
sentimental de quem os botou no mundo. Outra marca distintiva da ficção de
Highsmith comparece aqui: a crueldade. Ela não dá vez a sentimentalismo algum.
Se tem alguma compaixão por seus personagens, não se percebe. Esmera-se em tecer
a sua repulsividade, mas não usa material assim tão bizarro – eles são bem
verossímeis e reconhecíveis, como quaisquer conhecidos que tenhamos bem perto de
nós.
Essa história se perderia na chatice semelhante à trivialidade de algum
telefilme ou livro pseudo-psicológico se um outro personagem não surgisse: é um
tio solteirão de Brett, que é o próprio retrato da velhice decadente e ociosa. A
mão de Highsmith dá seu toque soturno: ele é incapaz de solidariedade, não é
nenhum Umberto D injustiçado, desmentindo qualquer clichê sentimental do tipo
“bom velhinho, coitado, a sociedade é cruel com os velhos, vamos ajudá-lo”.
George é sovina, egoísta, um completo peso morto, odiado por Edith, tratado com
comodismo apático por Brett, hostilizado e escarnecido por Cliffie. Com toda a
sua normalidade, a casa de Edith acaba se revelando uma sucursal do Inferno do
materialismo individualista norte-americano com todas as suas chagas expostas.
Para piorar as coisas, Brett pedirá o divórcio porque se encantou por uma mulher
mais jovem e vai deixar Edith cuidando do parasita George e do filho esquisito,
de quem não espera mais nada. E ele acha muito natural e absolutamente de seu
direito agir assim.
Essa naturalidade sinistra é outra das especialidades de
Highsmith. Seus malucos, egoístas, maníacos, prepotentes e egocêntricos sem
remédio nunca acham que estejam fora dos trilhos, mesmo quando fazem as coisas
mais insensatas. Ver o vilão Bruno, de “Pacto sinistro” – ele simplesmente
não compreende por que o relutante arquiteto Guy não quer matar seu pai em troca
da morte da esposa chata, de que ele o livrou pelo assassinato. Parece-lhe
simplesmente lógico, e as objeções morais, a indignação, a repulsa, o horror de
Guy à amizade mórbida que ele oferece deixam-no sinceramente magoado. O livro,
aliás, é muitíssimo mais matizado psicologicamente do que o filme que foi feito
dele (aliás, brilhantemente, mas em outra pauta) por Alfred Hitchcock. Bruno é
um lunático pra lá de perigoso, mas jamais se dará conta disso – sente-se na
verdade é um sujeito solitário que transforma toda uma obsessão homossexual em
oferta de amizade e, a cada recusa, sai mais seguro de que tem razão e de que
seu adorado Guy uma hora acabará percebendo o quanto ele é um grande amigo que
lhe fez o imenso favor de matar uma esposa que o atrapalhava... que se punha
inconscientemente entre ele e seu amado. Já a dona de casa Edith se refugia de
sua vida na verdade insana num lugar muito seguro e comum: um diário.
É um
dos lances de fina paródia desse romance. Em geral, os diários na ficção cumprem
uma função folhetinesca muito útil – ajudam a entender o interior das
personagens porque nunca significam menos que a verdade. Quer dizer: ao
deparar-se com o diário de um personagem, o leitor já sabe que a verdade sobre o
comportamento dele será revelada e que será satisfeito e lisonjeado em sua ânsia
de lógica e onisciência. Mas, Patrícia põe isso abaixo, porque no diário de
Edith não há um pingo de verdade. Seu diário tem a óbvia função compensatória de
mentir, mentir o máximo possível sobre si mesma e sobre sua vida. Neste livro,
acredito que Highsmith estava interessada sobretudo em desmascarar o
comportamento dos “politicamente corretos”, parodiando algum casal que ela
conheceu bem. Também queria puxar um pouco a cortina da intimidade real de uma
família americana para o leitor, desvendando os lances tortos e sinistros de
vidinhas bem comportadas em aparência. As duas gerações representadas pelo velho
tio e o adolescente monstruoso se tocam, ironicamente. Eles se odeiam, mas é
difícil saber quem é mais alienado, ou pior. Com Highsmith o terror oculto
na banalidade não é coisa com que se brinque.
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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.
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Direção e Editoria
Irene Serra
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