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O pássaro e o dicionário
Chico Lopes
UMA CRÔNICA que amei escrever e
publiquei (no livro "O abraço dos cegos"). Tributo a um pássaro, o saci,
peixe-frito, sem-fim ou matita-perê, que muita gente ouve sem saber o nome.
E é claro que já o pintei. Está aí, a tela, hoje sob posse do amigo
Rogério Furtado.

Ele me intrigava há muito tempo.
Sempre o imaginara pequenino, negro, um ônix alado tão resumido, humilde e denso
como seu canto repetitivo de duas notas. Dos seus muitos nomes populares sabia
dois: “saci” e “peixe-frito”. Ouvir seu canto monótono e desolado me fazia
pensar no “Blackbird” dos Beatles, emblema universal de uma profunda solidão
noturna. Os campos nevoentos da Inglaterra se fundiam em minha imaginação às
matas mais triviais das cercanias de Novo Horizonte, ou melhor: uns pedaços de
fins de quarteirão das ruas Santos Fonseca, Otaviano Marcondes, Antônio Sabino,
Cesário Castilho, onde brinquei muito quando menino e onde conheci as primeiras
lendas e histórias de assombração. Naquele espaço seu canto imperava nas
madrugadas de insônia ou em tardes lentas, ociosas, e com as duas notas
condensava um estado de espírito e uma paisagem.
Embora o ponto de
partida possa ser o mais circunscrito, da circunscrição saem ramificações que se
confundem com o mundo inteiro. Assim é que, em outra circunstância, ouvindo o
“Adagio con moto” da quinta de Beethoven, eu retorno à sombra de uma mangueira
da casa de um vizinho num dia que talvez fosse de chuva e sinto uma vibração
elegíaca que me vem tanto do quintal anônimo quanto da música universal.
Nossos veios mais secretos se comunicam com a alma do mundo e o indivíduo é
esse templo irremediavelmente singular onde um ensaio original da espécie se
processa. Sentimos coisas que não se parecem com nenhuma outra que outros sentem
– e isso tanto nos exalta quanto nos restringe. Tentamos - se somos artistas –
comunicá-las. E nem quando bem-sucedidos acreditamos tê-lo de fato conseguido.
Um dia, cismei de ir procurar informações sobre meu diminuto “blackbird” no
Aurélio. Lá encontrei: “Saci – Ave cuculiforme, da família dos cuculídeos, com
duas subespécies, uma das quais ocorre ao N. e L., outra ao S. do Brasil. Tem
coloração geral pardo-amarelada, com numerosas manchas escuras nas coberteiras
das asas, topete avermelhado, com manchas claras e escuras, garganta,
sobrancelha e abdome brancos. Alimenta-se de insetos e costuma pôr ovos em
ninhos de joão-teneném. ( Sinônimos: martim-pererê, matim-pererê,
matinta-pereira, matintaperera, matitaperê, peixe-frito, peito-ferido, peitica,
piririguá, roceiro-planta, seco-fico, sem-fim, sede-sede, tempo-quente, crispim,
fenfém)”. Passando para a enciclopédia Delta-Larousse, mais uma decepção:
“... tem cerca de 30 cm. de comprimento total, dorso pardo-acinzentado...”
Nada disso me impediu de continuar imaginando-o como no início: menor que um
tiziu, delicado, solitário e concentrado como seu fi-fi monótono. Desta
monotonia provém a sedução do canto. Parece uma condenação assumida com tristeza
e humildade, uma súplica repetida até o fim dos tempos da mesma maneira a fim de
comover alguma coisa ou alguém, perseverança impotente que enternece e incomoda.
Esse relógio noturno às vêzes acompanha o meu sono meio vigília e, meio
ouvido meio sonhado, é sempre o “blackbird singing in the dead of night” que o
Aurélio e o Delta-Larousse desmentem.
“Sem-fim”... Este é o melhor de
seus nomes populares. Porque o canto simples, despojado, ascético, consegue
sugerir a infinitude da noite em que nem tudo dorme. Pousado em algum ramo
oculto, o “peito ferido” de solidão sobre-humana, ele canta por mim e por um
milhão de almas noturnas que nunca conseguem dormir pensando em tudo que se
perde lá fora, sob a lua. Tenho vontade de sair da cama, vencido pela
exasperação que a súplica discreta e contínua infunde, e dizer: “Take these
broken wings and learn to fly. All your life you were only waiting for this
moment to arise”. Mas, volto ao sono. E as duas notas continuam lá – onde? -
cavando, pendulares, uma outra espécie de silêncio nos silêncios. Induzem a
dormir, mas a dormir como que no ar ou entre árvores, num vasto outro mundo em
que pássaros e almas humanas se fundissem, indissolúveis.
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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.
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Direção e Editoria
Irene Serra
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