01/10/2024
Ano 27
Semana 1.385

 




Arquivo

Imagens
e
Letras

 

 


 

A terrível sedução de “Os pássaros” não perdeu a atualidade


Chico Lopes



Quem quiser rever o filme poderá encontrá-lo no momento no streaming Oldflix.

Eu tinha 13 anos e o filme era proibido para menores de 14. Havia lido sobre a produção em Cinelândia ou em Filmelândia, sabia de seus preparativos, da escolha da modelo Tippi Hendren para o papel principal. Mas não pude entrar no cinema, não consegui comover o gerente com minhas súplicas, e fiquei defronte ao prédio, ouvindo os ruídos da projeção, os gritos das gaivotas, pegando em relance algumas imagens do incêndio de Bodega Bay, quase no final.

Minha paixão por Hitchcock vem daí. Os pássaros foi minha primeira grande intuição do que poderia ser a verdadeira arte cinematográfica. Obcecado por pássaros, eu havia desenhado, a lápis de cor, todo um caderno, procurando fazer com um máximo de exatidão cópias dos pássaros de um álbum de figurinhas educativas. Também desenhava a lápis umas HQs com toques de ficção científica, prédios que se incendiavam, e era leitor ávido de gibis que trouxessem isso – calamidades, ameaças sobrenaturais. O filme ia ao encontro desses devaneios e despertava em mim fascínio quase obsessivo. Nunca me conformei em não ter podido vê-lo daquela vez e desenvolvi por ele uma idolatria só satisfeita, parcialmente, por leituras. Só o vi, na íntegra, pela televisão, mais de dez anos depois. Para ficar maravilhado.

Lembro-me que um crítico de renome chamou-o de “obra-prima da inquietação” e a Hitchcock de “gênio da arte da ansiedade, comparável a Kafka e Edgar Allan Poe”. Os cinéfilos são, às vezes, exagerados e parecem precisar dar aos filmes de sua predileção um verniz culto, procedente das artes ditas “mais nobres” (em geral, Literatura) nem sempre cabível. No caso de Os pássaros, no entanto, a comparação é mais que justa: Hitchcock, com essa obra, ganha uma dimensão de grande criador visionário. Em matéria de inquietação, poucos filmes chegam perto.

Alguém disse que é o precursor do filme de catástrofe, o que considero uma ofensa ao gênio hitchcockiano, que é, acima de tudo, sutil. Nenhum terremoto, nenhum grande edifício em chamas, nenhuma avalanche teria a força aterradora desses pássaros banais, imposta de maneira fascinante e inexplicável, assim como em O corpo que cai vemos a Morte transformada em sedutora e participamos de um sonho de ressurreição e onipotência (e necrofilia).

Para começar, o filme não é sensacionalista: os ataques dos pássaros não são combatidos pelo exército americano nem alardeados por todos os meios de comunicação, restringindo-se a uma cidadezinha litorânea da Califórnia – Bodega Bay. Não há morticínio, e uma suposta vingança ecológica fica reduzida à precariedade da conjetura; Hitch parece descartar todas as interpretações simplistas; sua preocupação deve ter sido a de provocar inquietação através de uma fantasia assumida como tal. A invasão das aves é gratuita, imprevisível, e uma velhota ornitóloga, que pedantemente descrê da agressividade dos pássaros, fica daí a pouco reduzida, por um ataque, a um simples ser humano, envergonhado, incapaz de entender.

Hitch sempre ironiza o especialista em seus filmes. No fim de Psicose, um psiquiatra, explicando o comportamento anormal de Norman Bates, não explica quase nada, ou melhor, uniformiza, pelas teorias psiquiátricas, um modo de ser que até ali nos fora mostrado com todo o seu pathos singular de tragédia individual e que não tem como não continuar misterioso. O ódio ao especialista, ao “entendedor”, talvez proceda de nosso desapontamento com a arrogância da lógica, que só é eficaz enquanto não confrontada com o mistério e o absurdo da realidade.

Aliás, em Psicose, filme imediatamente anterior a Os pássaros, há uma pista para a gênese deste. Enquanto Marion, próxima vítima, come um sanduíche preparado por ele, Norman Bates ironiza a expressão “comer como um passarinho”. “Porque não é verdade, sabe? Os passarinhos comem exageradamente”, diz. E atrás de sua cara de alucinado, com asas abertas, há uma coruja empalhada. Por todo o motel, há também daqueles quadrinhos de pássaros tipicamente decorativos.

Hitch talvez quisesse desmitificar a aura tradicional de amabilidade das aves, devolvendo à Natureza filmada um senso de realidade bem mais crível que a habitual e piegas inocuidade das “graciosas criaturinhas do ar”. O papel dos grandes artistas sempre foi o de recuperar o poder de perturbação do real, que é o responsável pela magia da arte. A fantasia pura e simples está sempre muito abaixo ou muito acima da grandeza, do assombro da realidade, esta sim sobrenatural.

Há no filme cenas que são pura poesia de ansiedade: Melanie Daniels, esperando a menina Cathy sair da escola, fuma nervosamente e percebe que, um por um, os pássaros ameaçadores vão pousando nos ferros de um playground próximo. Vemos a sua impotência em crescendo, e o crescendo obedece a uma prodigiosa intuição cinematográfica – os pássaros vão pousando nos ferros do brinquedo infantil ao ritmo de vozes de crianças que cantam inocentemente na sala de aula, ignorando o perigo iminente, só testemunhado por Melanie. É um autêntico balé de medo, impotência, presságio, inquietação.

A violência das aves é inusitada: furam portas, telhados, vidros, atacando pessoas e coisas com uma determinação rigorosa e insana. Hitch dispensa trilha sonora, deixando que os gritos, pios, cantos façam a música do filme, que assim fica marcado por um fundo sonoro surdo, ubíquo, vago e inquietante, como um vento apocalíptico. Efeitos eletrônicos especiais enfatizam os chamados e gritos das aves de um modo a causar arrepios. A simples visão das aves se juntando nos fios de eletricidade, contra o céu crepuscular, ganha, no filme, uma eloquência quase mística. E há muito sexo nos ataques: bicos fálicos, determinados, insistentes, nas pernas (muito desejáveis) de Melanie, e uma alegria histérica na destruição pela destruição. Desde a abertura, com os créditos sendo retalhados pelas aves, entende-se que elas simbolizam o que se convencionou chamar de “Id”, a força puramente instintiva, anárquica, gratuita e vital mantida sob repressão em cada homem. Hitch gosta, obviamente, de Psicanálise, mas nesse filme, ao contrário de no seguinte, Marnie – Confissões de uma ladra, a simbologia não é tão evidente, embora Édipo e correlatos possam ser vistos nos segredos latentes/manifestos do enredo. Mitch Brenner, o advogado por quem Melanie sente um desejo atrevido de moça rica e mimada, é escravo de uma mãe possessiva, que o impediu de namorar a professora Anne Hayworth, que mora resignadamente em Bodega Bay. O retrato do pai morto é transparentemente uma referência ao triângulo edipiano; de trás dele, a mãe, preocupada em recolocá-lo no lugar depois de um súbito ataque de pardais à sala, faz cair um passarinho que morrera. Para proteger a casa, no ataque final, Mitch coloca móveis contra a porta; o último deles é uma penteadeira, o que o faz ficar diante de um espelho. E, do outro lado do espelho, os pássaros. Eles são mesmo o avesso elucidador da verdade, a violência freudiana existente nessa família cuja paz é a mais superficial possível.

Quanto ao aspecto de catástrofe ecológica, o filme segue sendo relevante. Um Apocalipse causado por meras aves bem conhecidas e domésticas vai de encontro ao que acontece, em grande escala, no mundo atual, onde a presença do homem é um desastre para a Natureza e ela executa suas vinganças sempre que pode (lembrar apenas, para juntar-se a este comentário, a gripe aviária que tanto nos assustou em anos recentes).

O pai de Hitchcock, segundo as biografias, tinha uma loja de aves. É decantado um episódio da infância do cineasta, não se sabe se inventado por ele (famoso pelas imposturas publicitárias) ou não. O homem teria posto o filho na cadeia por alguns minutos, numa demonstração de autoridade cuja razão Hitch não compreendeu: o que teria feito de errado? Deve ter sentido que o pai desejava era infundir o terror pelo terror, gozando o arbítrio de sua posição superior. Como em A sentença, de Kafka, o pai aterroriza porque é pai e não precisa mais – acha-se plenamente justificado pela terrível respeitabilidade de sua posição. E “o que perturba na sociedade é a aparência racional de sua irracionalidade”, disse Marcuse. O gosto pelo sadismo pode ser dissimulado sob formas oficiais, na ordem familiar, nos fatos comumente aceitos e até estimulados, e, na arte, sob a sedução das formas.

Mas a vingança pessoal de Hitch é um dado menor numa obra tão bela. O que importa é a flor original que podemos arrancar de nossos ressentimentos, fobias, obsessões. Acima da biografia psicopatológica do criador, embora, sem dúvida, alimentando-se dela, resplandece o vigor autoexplicativo da criação.



Direitos Reservados.
É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor.




Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.

 __________________________

Direção e Editoria
Irene Serra