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Lembrando a vocação poética
Chico Lopes
Onde estaria a Poesia no Cinema? Muitos
filmes já celebraram biografias de poetas como T.S Eliot, Rimbaud e outros, mas
o que fica em geral, na memória cinéfila, é a qualidade poética de certos filmes
por algumas cenas muito marcantes e uma qualidade especial de humanismo
transcendente que o Cinema, arte industrial comprometida demais com os lucros
dos produtores e a vulgaridade do público, consegue às vezes oferecer. Houve ao
menos um cineasta que, poeta ele também, postulou um Cinema-Poesia: o italiano
Pier Paolo Pasolini, autor de filmes como “Teorema”, que se valia de fortes
metáforas poéticas.
Passemos das metáforas de “Teorema” para um terreno
italiano mais simples e básico, o do neorrealismo. Penso que Vittorio de Sica,
por filmes de uma humanidade muito comovente como “Ladrões de bicicleta”,
“Vítimas da tormenta” e o indispensável “Umberto D”, oferecia momentos poéticos
com frequência naquelas produções essencialmente sociais e melodramáticas. Há
também poesia no cinema de Luchino Visconti, em “Senso-Sedução da carne” e
“Morte em Veneza”, para lembrar dois filmes do diretor que me ocorrem neste
momento. E como esquecer Federico Fellini, que, apaixonado por imagens, às vezes
nem fornecia explicação alguma para a profusão mágica dessas imagens como o
pavão abrindo as asas em “Amarcord” e aquele rinoceronte que fornece bom leite a
bordo de um navio na Primeira Guerra Mundial em “La nave va”, cena de puro
surrealismo poético? Mesmo em Alfred Hitchcock há momentos poéticos e “Os
pássaros” foi celebrado por alguns de seus críticos como “grande poema
apocalíptico”. Há também poesia apocalíptica no belíssimo e indispensável “Blade
Runner”, de Ridley Scott, cult movie de 1982. O replicante último a ser
assassinado, vivido por Rutger Hauer, tem as melhores falas do filme, e algumas
são particularmente poéticas.
Nos
últimos anos, David Lynch, com seu cinema de imagens fortes e enigmáticas, é
forte candidato a um autor-poeta por belezas obtidas em “Veludo azul”, “Cidade
dos sonhos” e outros filmes seus, como o básico “Eraserhead”, um enigma visual
de forte apelo poético. Lembraria outro filme, nas pegadas de Lynch, que pode
ser visto no streaming, “Animais noturnos” (foto), de Tom Ford. E o Cinema,
quando é da maior qualidade, sempre encontrará pontos em comum com a Poesia.
Melhor ainda quando essa Poesia cinematográfica pode dispensar falas e se resume
numa que outra imagem que, caso queiramos falar delas, teremos que recorrer à
poesia. Voltando ainda a Lynch, a sequência em que as duas heroínas, Laura
Herring e Naomi Watts, saem pela noite à procura do Night Club Silêncio (título
mais poético, impossível) e percebem uma importante revelação para o conteúdo do
filme na canção “Llorando”, cantada por Rebekah Sel Rio, é um grande momento
que, recontado, dará em poesia. No Night Club aquele, o que aprendemos é uma
lição de realidade (o desmontar da cantora e a continuidade de sua voz sem
corpo) que provocará lágrimas em ambas e voltará no final do filme, quando uma
figura de peruca azul num camarote pedirá “Silêncio”. Lynch, como todo cineasta
com um pé em várias artes, fez mesmo poesia não-linear em muitos de seus filmes.
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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.
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Direção e Editoria
Irene Serra
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