16/08/2024
Ano 27
Semana 1.379

 




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Lembrando a vocação poética


Chico Lopes



Onde estaria a Poesia no Cinema? Muitos filmes já celebraram biografias de poetas como T.S Eliot, Rimbaud e outros, mas o que fica em geral, na memória cinéfila, é a qualidade poética de certos filmes por algumas cenas muito marcantes e uma qualidade especial de humanismo transcendente que o Cinema, arte industrial comprometida demais com os lucros dos produtores e a vulgaridade do público, consegue às vezes oferecer. Houve ao menos um cineasta que, poeta ele também, postulou um Cinema-Poesia: o italiano Pier Paolo Pasolini, autor de filmes como “Teorema”, que se valia de fortes metáforas poéticas.

Passemos das metáforas de “Teorema” para um terreno italiano mais simples e básico, o do neorrealismo. Penso que Vittorio de Sica, por filmes de uma humanidade muito comovente como “Ladrões de bicicleta”, “Vítimas da tormenta” e o indispensável “Umberto D”, oferecia momentos poéticos com frequência naquelas produções essencialmente sociais e melodramáticas. Há também poesia no cinema de Luchino Visconti, em “Senso-Sedução da carne” e “Morte em Veneza”, para lembrar dois filmes do diretor que me ocorrem neste momento. E como esquecer Federico Fellini, que, apaixonado por imagens, às vezes nem fornecia explicação alguma para a profusão mágica dessas imagens como o pavão abrindo as asas em “Amarcord” e aquele rinoceronte que fornece bom leite a bordo de um navio na Primeira Guerra Mundial em “La nave va”, cena de puro surrealismo poético? Mesmo em Alfred Hitchcock há momentos poéticos e “Os pássaros” foi celebrado por alguns de seus críticos como “grande poema apocalíptico”. Há também poesia apocalíptica no belíssimo e indispensável “Blade Runner”, de Ridley Scott, cult movie de 1982. O replicante último a ser assassinado, vivido por Rutger Hauer, tem as melhores falas do filme, e algumas são particularmente poéticas.

Nos últimos anos, David Lynch, com seu cinema de imagens fortes e enigmáticas, é forte candidato a um autor-poeta por belezas obtidas em “Veludo azul”, “Cidade dos sonhos” e outros filmes seus, como o básico “Eraserhead”, um enigma visual de forte apelo poético. Lembraria outro filme, nas pegadas de Lynch, que pode ser visto no streaming, “Animais noturnos” (foto), de Tom Ford. E o Cinema, quando é da maior qualidade, sempre encontrará pontos em comum com a Poesia. Melhor ainda quando essa Poesia cinematográfica pode dispensar falas e se resume numa que outra imagem que, caso queiramos falar delas, teremos que recorrer à poesia. Voltando ainda a Lynch, a sequência em que as duas heroínas, Laura Herring e Naomi Watts, saem pela noite à procura do Night Club Silêncio (título mais poético, impossível) e percebem uma importante revelação para o conteúdo do filme na canção “Llorando”, cantada por Rebekah Sel Rio, é um grande momento que, recontado, dará em poesia. No Night Club aquele, o que aprendemos é uma lição de realidade (o desmontar da cantora e a continuidade de sua voz sem corpo) que provocará lágrimas em ambas e voltará no final do filme, quando uma figura de peruca azul num camarote pedirá “Silêncio”. Lynch, como todo cineasta com um pé em várias artes, fez mesmo poesia não-linear em muitos de seus filmes.
 


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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.

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