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Biografia pinta retrato grandioso do criador de "Lawrence
da Arábia"
Chico Lopes
Uma
biografia de diretor de cinema cuja tradução para o Português nunca foi feita e
poderia beneficiar muito os cinéfilos brasileiros é “David Lean”, de Kevin
Brownlow, da Faber & Faber, de 1996. É necessário importá-la e o livro é um
calhamaço um pouco intimidador de 810 páginas, mas o interesse nunca se perde.
É essencial para quem queira saber mais sobre David Lean. O ator Alec
Guiness, que esteve presente em tantos de seus filmes, diz na capa: “I cannot
imagine it done better”. Ótima referência, porque Guiness é um dos rostos
definidores do cinema de Lean. Esta capa traz o diretor como uma espécie de titã
a lutar contra os elementos, na filmagem da tormenta marítima de “A filha de
Ryan”, com uma câmera de 70 mm.
O tom do livro é reverente, inscrevendo
Lean numa estirpe de heróis. O ranço de fã que Brownlow às vezes demonstra pode
ser um pouco aborrecido para alguns leitores, mas é quase impossível escapar a
ele quando se tem um homem realmente admirável a biografar. Mas, um pouco dessa
reverência é atenuada por uma vinheta que traz Lean como na efígie de um
imperador romano que padecesse de clássica megalomania. De modo que Brownlow não
estava tão alheio assim às críticas de arrogante que alguns fizeram a ele.
Polêmico, Lean sempre foi. Seus filmes começaram por ser estritamente
ingleses, e ele fez duas grandes adaptações de livros de Charles Dickens,
“Grandes esperanças” e “Oliver Twist” e “Desencanto”, sucesso romântico que não
pode ser visto unicamente assim (e foi refeito canhestramente como “Amor à
primeira vista”, pelo cinema americano). Era bom para essas histórias de amor
casto sufocado pela repressão, mas ruim para o humor: “Uma mulher do outro
mundo” (“Blithe spirit”), adaptado de uma peça de Noel Coward, existe em DVD no
Brasil e pode ser visto pelos estudiosos de Lean hoje em dia – é uma peça
anacrônica em que a afetação tipicamente inglesa não consegue ser atenuada pelo
humor, com um Rex Harrison bem enfadonho no papel principal. Mas a mão de Lean
para o romantismo racionalmente reprimido funciona às maravilhas, outra vez, em
“Quando o coração floresce”, filmado em Veneza com Katharine Hepburn.
Pois a carreira inglesa, claro, deu lugar, com pompas, à carreira de um David
Lean internacional, associado a grandes produtores norte-americanos, em “A ponte
do Rio Kwai”, que foi quando se começou a vê-lo como um diretor popular de fato.
E aí ele sofreu objeções, como as de François Truffaut, que o rotulou como
inglês e acadêmico demais em seu livro “Os filmes de minha vida”. Truffaut
desprezava o gigantismo dessas produções, que lhe deram prêmios Oscar em penca e
reconhecimento do público e da crítica. A grandeza de “Lawrence da Arábia” teria
algo dos mamutes medíocres inchados por dólares que foram alguns filmes daqueles
anos? O típico esforço “épico” daqueles anos não era o de Lean, mas sim
“Ben-Hur”, grotesca utilização do nome de diretor de William Wyler para um filme
frágil em que “grandeza” significava elefantíase, trilha sonora de Miklos Rosza
e o sangue de Cristo “lavando os pecados do mundo” no final. Truffaut não foi
justo, porque Lean tinha mão intimista e, quando dilatada, um gigantismo
autêntico.
Nos anos 1960, Lean tornou-se um anacronismo ressentido. O
cinema que ele fazia começou a ser contestado por gente como Truffaut e toda a
“Nouvelle Vague”, pela década marcada por rebeldia juvenil, mudanças de
comportamento e por um cinema muito mais informal, descuidado, barato, feitos
por cineastas sem formação acadêmica de qualquer espécie que queriam expressar
idéias em geral “revolucionárias” cuja ingenuidade hoje em dia nos dão
consideráveis urticárias. No livro de Brownlow, ficamos sabendo que ele não se
dava ao trabalho para ver esse tipo de filme, à la Godard ou outro diretor, que
não combinava mesmo com o seu espírito.
Mas a crítica que se fez a Lean
naqueles anos tinha certa procedência, como se provou depois. Pois a sutileza em
escala épica de “Lawrence da Arábia” degenerou no esforço malogrado de “Doutor
Jivago”, que foi sucesso popular, mas se afundava na frouxidão e em múltiplas
direções, só decolando emotivamente sob o tema musical excessivamente
sentimental e opressivo de Maurice Jarre. Havia Metro demais e Lean de menos
nesse filme. E o mesmo problema, Metro e popularidade em excesso, acabou por
afetar gravemente “A filha de Ryan”. Pauline Kael esmagou Lean num encontro com
críticos em Nova York, devido a essa produção. Ele ficou magoado e se recolheu.
Depois disso, ficou 14 anos sem filmar e só voltou à tona com “Passagem para a
Índia”, em 1984.
As contestações que a crítica fazia a Lean, naqueles
anos de superproduções, parecem não fazer mais sentido. Numa época como a nossa,
em que superproduções são mastodontes repletos de efeitos especiais (que, a
despeito de toda a sua ação, mais entorpecem que entusiasmam) como “O senhor dos
anéis”, Lean reaparece como um humanista de primeira linha. “Lawrence da Arábia”
tem um homem, não gadgets eletrônicos nem seres mágicos e criaturas
extraterrestres, provas da inumanidade do cinema atual, em seu centro. Dois
minutos no intimismo em “Passagem para a Índia” e se tem todo o perfil da
personagem, Adela Quested, e todo o filme, naquela flor cujo perfume ela sente.
Uma janela, cuja cortina é agitada pelo vento, se abre, Adela aspira ao perfume
noturno da frangipani e a Índia, o desejo, a interdição, tudo está ali. Brownlow
diz que a atriz, Judy Davis, que começou as filmagens hostil, pois tinha Lean em
baixa conta, quando ele pediu que ela aspirasse o perfume, entendeu por fim que
se tratava de um grande diretor.
Esse perfume, esse momento mágico de
verdade, capaz de sintetizar toda uma produção, é Cinema de primeiríssima, e já
não há mais Leans. Nem Truffauts, nem Kaels. Fomos atirados na mais rasa
obviedade e numa infantilidade tecnológica de que parece que tão cedo não iremos
sair.
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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.
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Direção e Editoria
Irene Serra
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