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Em defesa do roteirista: “Cidadão Kane” e outros problemas

Chico Lopes
“Cidadão Kane” foi, durante longo tempo, o melhor filme de todos os tempos,
segundo listas de críticos que eram de vez em quando divulgadas. Por tanto tempo
reinou nessa posição que muita gente devia achar que nunca a perderia, mas
perdeu para “Um corpo que cai”, de Hitchcock, que por sua vez deverá perder a
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"Um corpo que cai" |
posição para algum outro filme que está por ser conhecido, já que as opiniões
dos críticos não são definitivas numa arte que está sempre apresentando
novidades como o Cinema. Mas o problema com “Cidadão Kane” é curioso, porque a
falecida crítica Pauline Kael, muito combativa, mas muito respeitada, certa vez
escreveu que “Kane” era mais obra de seu roteirista, Herman Mankiewicz, que de
Orson Welles, seu diretor. Isso rendeu uma polêmica que parecia nunca ter fim.
Surgiu o escritor Gore Vidal, que em “De fato e ficção”, propôs que se
reavaliasse o papel do diretor nos filmes, já que a revista “Cahiers du Cinema”
nos anos 1950, levantou a lebre de que só o diretor tinha importância no
conjunto de uma obra cinematográfica e isso fez com que de repente diretores do
passado, que às vezes não passavam de hábeis artesãos contratados pelos
poderosos estúdios, recebessem uma valorização a seu ver injusta. Pauline Kael,
ao tocar na importância do roteirista Herman Mankiewicz na construção de uma
obra-prima elogiada por décadas e mais décadas como “Cidadão Kane”, tocou num
ponto que podia ser discutido, mas provocou uma revalorização dos roteiristas
que também fez com que os diretores fossem menos colocados nas nuvens. Os fãs de
Orson Welles, claro, ao considera-lo um gênio (o que fez dele um homem também um
tanto bombástico e espalhafatoso), acharam que Mankiewicz tinha sua importância,
mas que o material todo só ganhou seu brilho cinematográfico devido ao talento e
à ousadia do cineasta.
É
interessante, para entender até onde chegou essa polêmica, ler um livro da
Record que pode ser encontrado hoje em dia em sebos que tenham obras sobre
Cinema. É “Criando Kane e outros ensaios”, obra de Pauline que é indispensável
para críticos de cinema ou simples espectadores. Ela era uma crítica com uma
bagagem cultural respeitável, mas escrevia para revistas e jornais dirigindo-se
ao grande público e não sofria do ranço acadêmico que torna tantas críticas
intragáveis. Kael conquistou tanto um público refinado quanto uma grande
popularidade, equilibrando polos que para muita gente são irremediavelmente
antagônicos. “Criando Kane”, com 362 páginas, fala não só da contribuição do
roteirista para “Kane”, mas também de muitos filmes, em análises cujo brilho
pode ser constatado até hoje. Porém já não há críticos com sua capacidade de
trafegar entre a erudição e a popularidade, mantendo uma postura de combate e
desmistificação. O Cinema mudou demais e a crítica também.
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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.
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Direção e Editoria
Irene Serra
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