01/07/2024
Ano 27
Semana 1.371

 




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A ternura num mundo gelado em filme finlandês


Chico Lopes



Tive nesta semana um dia feliz pra minha condição de cinéfilo: vi FOLHAS DE OUTONO, filme finlandês de Aki Kaurismaki, o diretor mais famoso daquele país. Tinha que estar no Mubi, claro, porque este é um caminho alternativo natural para quem está cansado de tanto lixo e mediocridade nos streamings mais conhecidos. Premiado em Cannes no ano passado, é simplesmente aquilo que a crítica da revista Time on line, Stephanie Zacharek, descreve: "Uma obra-prima discreta sobre a ternura num mundo frio."

Imaginamos a Finlândia como um país sempre muito frio e no filme estamos no cenário da capital, Helsinki, mas nada de cartão turístico – é a Helsinki das pessoas comuns, dos pobres diabos que se ardem trabalhando para sobreviver numa situação mundial de penúria e de exploração descarada por seus patrões e outros poderosos sem a menor consideração pelo ser humano a não ser como objeto de uso e desuso. Ansa, uma funcionária apagada de um supermercado, é demitida por ter enfiado na bolsa um alimento cuja validade já estava vencida. Não há perdão. Ela terá que procurar outro emprego e o encontrará num bar que será fechado antes que ela possa receber seu primeiro pagamento, por trabalho de copeira. De outro lado, sem que ambos se conheçam, o solitário e tímido Holappa é uma peça descartável da construção civil e outros empregos brutais que também acaba demitido por alcoolismo. Não é possível imaginar um homem sensível, delicado e tímido como ele sobrevivendo naquele ambiente sem recorrer à bebida. E ele bebe, bebe muito. Numa noite num karaokê, começará a flertar com Ansa. Um flerte dos mais inibidos.

Em meio a muita música, o que inclui as manjadas, mas comoventes "Serenata de Schubert" e "Sinfonia Patética" (de Tchaicovsky), esse casal desajeitado e verossímil (a humanidade comum deles é uma grande força no filme) não sairá da lembrança do cinéfilo. Fiquei comovido. Porque é também um filme que celebra os sonhos que o Cinema pode nos dar. Não é por acaso que, depois de assistirem "Os mortos não morrem", de Jim Jarmusch, sem rir, eles conversem em frente ao cinema com um cartaz de "Desencanto", obra-prima de David Lean, ao fundo. O tempo todo achei que o ator evocava James Stewart em seu tipo tímido e longilíneo. E o próprio título do filme remete a um melodrama de Joan Crawford nos anos 1950. Ouvir canções conhecidas em finlandês, um idioma muito estranho para nós, ajuda a tornar o filme ainda mais singular e forte.

Melancolia e desespero, mas em tom contido, percorrem todo o filme, e nos comovemos porque a situação é melodramática, universal, apesar de seca. Num momento em que o filme evocará "Tarde demais para esquecer", belo melodrama de Cary Grant e Deborah Kerr, pensamos que é o fim. Mas não será.

FOLHAS DE OUTONO é um daqueles pequenos filmes muito humanos e tocantes que de vez em quando o Cinema, arte industrial em que a quantidade supera em muito a qualidade, encontra uma espécie de redenção, para graça dos cinéfilos.
 


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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.

 

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Irene Serra