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A ternura num mundo gelado em filme finlandês
Chico Lopes
Tive nesta semana um dia feliz pra minha
condição de cinéfilo: vi FOLHAS DE OUTONO, filme finlandês de Aki Kaurismaki, o
diretor mais famoso daquele país. Tinha que estar no Mubi, claro, porque este é
um caminho alternativo natural para quem está cansado de tanto lixo e
mediocridade nos streamings mais conhecidos. Premiado em Cannes no ano passado,
é simplesmente aquilo que a crítica da revista Time on line, Stephanie Zacharek,
descreve: "Uma obra-prima discreta sobre a ternura num mundo frio."
Imaginamos
a Finlândia como um país sempre muito frio e no filme estamos no cenário da
capital, Helsinki, mas nada de cartão turístico – é a Helsinki das pessoas
comuns, dos pobres diabos que se ardem trabalhando para sobreviver numa situação
mundial de penúria e de exploração descarada por seus patrões e outros poderosos
sem a menor consideração pelo ser humano a não ser como objeto de uso e desuso.
Ansa, uma funcionária apagada de um supermercado, é demitida por ter enfiado na
bolsa um alimento cuja validade já estava vencida. Não há perdão. Ela terá que
procurar outro emprego e o encontrará num bar que será fechado antes que ela
possa receber seu primeiro pagamento, por trabalho de copeira. De outro lado,
sem que ambos se conheçam, o solitário e tímido Holappa é uma peça descartável
da construção civil e outros empregos brutais que também acaba demitido por
alcoolismo. Não é possível imaginar um homem sensível, delicado e tímido como
ele sobrevivendo naquele ambiente sem recorrer à bebida. E ele bebe, bebe muito.
Numa noite num karaokê, começará a flertar com Ansa. Um flerte dos mais
inibidos.
Em meio a muita música, o que inclui as manjadas, mas
comoventes "Serenata de Schubert" e "Sinfonia Patética" (de Tchaicovsky), esse
casal desajeitado e verossímil (a humanidade comum deles é uma grande força no
filme) não sairá da lembrança do cinéfilo. Fiquei comovido. Porque é também um
filme que celebra os sonhos que o Cinema pode nos dar. Não é por acaso que,
depois de assistirem "Os mortos não morrem", de Jim Jarmusch, sem rir, eles
conversem em frente ao cinema com um cartaz de "Desencanto", obra-prima de David
Lean, ao fundo. O tempo todo achei que o ator evocava James Stewart em seu tipo
tímido e longilíneo. E o próprio título do filme remete a um melodrama de Joan
Crawford nos anos 1950. Ouvir canções conhecidas em finlandês, um idioma muito
estranho para nós, ajuda a tornar o filme ainda mais singular e forte.
Melancolia e desespero, mas em tom contido, percorrem todo o filme, e nos
comovemos porque a situação é melodramática, universal, apesar de seca. Num
momento em que o filme evocará "Tarde demais para esquecer", belo melodrama de
Cary Grant e Deborah Kerr, pensamos que é o fim. Mas não será.
FOLHAS DE
OUTONO é um daqueles pequenos filmes muito humanos e tocantes que de vez em
quando o Cinema, arte industrial em que a quantidade supera em muito a
qualidade, encontra uma espécie de redenção, para graça dos cinéfilos.
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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.
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Direção e Editoria
Irene Serra
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