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“A fazenda africana” e “Entre dois amores”: Ler o livro, ver
o filme
Chico Lopes
Embora
a velha discussão “é melhor o livro ou o filme?” pareça esgotada, ela ainda se
repete na boca de muita gente. Claro que quase sempre, devido à imensa pressão
da indústria cultural, muita gente fica só no filme e até ignora que ele foi
feito a partir de um livro. A discussão é muito propícia a ironias, erros e
acertos. Um acerto é “Entre dois amores”, filme de Sidney Pollack adaptado de “A
fazenda africana”, livro da dinamarquesa Isak Dinesen, que é pseudônimo da
baronesa Karen Von Blixen. E, mesmo tendo sido uma bela produção (a fotografia
deslumbrante das pradarias africanas é sempre lembrada), houve quem achasse que
o filme não foi assim tão fiel ao livro, concentrando-se demais no triângulo
amoroso. Quanto a mim, diria que o livro merece plenamente ser lido e é muito
superior ao filme, mas que o filme também tem sua dignidade e pode nos levar até
o livro. “A fazenda africana” é a narrativa em primeira pessoa dos anos em que
Isak Dinesen viveu no Quênia, numa paisagem que o filme explorou
maravilhosamente bem, cuidando de uma fazenda de café. A fazenda foi fruto de
sua união com um aristocrata aventureiro que não dava muita bola nem para ela
nem para a propriedade (e tinha infidelidades, tanto que a fez contrair
sífilis). Cuidando dessa fazenda e dos nativos que trabalhavam nela, Dinesen
tudo observa com uma capacidade ímpar de escrever com total força descritiva,
sem abrir mão da poesia. O livro é tão absorvente e bem escrito que, quando ela,
forçada a deixar a fazenda depois da falência, voltou à Dinamarca, tornou-se uma
celebridade nacional e internacional como escritora.
Meryl Streep ficou
com o papel principal e, como tudo que faz e fez, demonstrou uma competência
acima de qualquer dúvida no papel da fazendeira, mas Robert Redford, ator frio,
não é tão convincente no papel de seu interesse romântico. No papel do marido
aristocrata e indiferente, Klaus Maria Brandauer está muito melhor, mas o filme
parece não transmitir com muita clareza a real situação dessas pessoas – há
muita ambiguidade sexual no ar, como se fossem criaturas um tanto liberadas
demais para sua época – e a força da produção está nas imagens, tanto nas dos
nativos africanos lindamente fotografados quanto nos cenários de tirar o fôlego.
Mais interessante que o romance não muito convicto entre Dinesen e o caçador
(que a leva a um passeio de aeroplano que virou uma cena antológica, amada por
todos os que viram o filme e dificilmente esquecível, pela beleza das tomadas
aéreas) é a sua relação com os nativos que, apesar de não compreendê-la muito
bem, têm por ela um respeito profundo como só primitivos puros poderiam ter.
O interessante é que um novo filme, de 2021, do diretor dinamarquês Bille
August, traz o assunto de volta e está disponível em streaming pelo Prime.
Chama-se “O pacto” e é a narrativa de um poeta jovem e desconhecido que é
convidado a fazer parte do círculo de Dinesen já quando famosa e reinando em
círculos literários refinadíssimos da Dinamarca. É um senhor convite, feito pela
própria Dinesen, chamariz para qualquer escritor principiante, porta aberta para
a Glória e os patrocinadores ricos. Ela propõe ao poeta um pacto, do qual aos
poucos conheceremos os senões. Como todo pacto, esse tem seu lado fáustico e
pode resultar em desdobramentos imprevisíveis. Vale a pena conhecer o filme
porque Dinesen, com todos os defeitos que pudesse ter, foi realmente uma mulher
e escritora extraordinária.
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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.
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Direção e Editoria
Irene Serra
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