01/06/2024
Ano 27
Semana 1.369

 




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Um pouco de Bergman: muito longe de Deus


Chico Lopes



É quase impensável para hoje em dia, vendo ao que foi reduzido o Cinema nos streamings (que, na verdade, atraem o público mais pelas séries), pensar na possibilidade de surgir alguém como o cineasta sueco Ingmar Bergman, falecido em 2007. Ele foi um homem muito culto cujo cinema tinha filiações na filosofia de Kierkegaard, na literatura de Kafka, de Strindberg e numa formação protestante que o atormentou na infância e de cujas sombras ele nunca chegou a se livrar completamente. Seus filmes não faziam concessões ao público e foram um longo aprendizado, cheio de tropeços. Aos 89 anos, quando faleceu, deixou como legado uma obra cinematográfica que dificilmente teria comparações. Para muitos, aliás (Woody Allen um deles), ele foi o maior de todos os cineastas.

Não era um cineasta que, vivo fosse, se adaptaria com facilidade aos tempos atuais, quando o Cinema sofre com o peso de uma indústria cega, excessiva, que explora o entretenimento mais brutal para sádicos num mundo que parece estar doente de tanta violência e morbidez. Morbidez, no caso de Bergman, estava só na pergunta que o desesperado cavaleiro medieval de “O sétimo selo”, jogando xadrez com a própria Morte, lança inutilmente aos céus enquanto a Morte se diverte com sua impotência para encontrar qualquer resposta.

Bergman ficou associado com um ateísmo que era apenas a face de seu desespero humano e uma prova da sua honestidade intelectual em reconhecer o que chamou, para seus filmes, de “O Silêncio de Deus”. “O Silêncio”, aliás, foi título de um de seus filmes mais densos, em que duas mulheres com uma criança, filho de uma delas, estão perdidas numa viagem de trem por um país desconhecido cuja língua não falam enquanto lá fora passam tanques atestando que ali acontece uma guerra sem sentido, como toda guerra. Tanques e uma guerra incompreensível também comparecem em “Vergonha”, onde um casal (Liv Ullmann e Max von Sydow) acredita poder viver alheio ao contexto social de um país indefinido que está envolvido num conflito insondável. O conflito chegará a eles, que serão submetidos à sordidez e às humilhações dos comandantes da guerra, perplexos e postos naquela situação tipicamente kafkiana de não-entendimento diante do que lhes acontece. A guerra provavelmente era o epítome do absurdo humano para Bergman, pois vemos no início do que muitos consideram a obra-prima do diretor sueco, “Persona”, a famosa cena de horror do monge budista ateando fogo a si próprio em cena da guerra do Vietnam. A cena está entre outras tantas que constituem um pesadelo fragmentado que acabará com aquele efeito famoso da fita que se queima na tela, diante do olhar e do tato de um menino perplexo.

Percorrer a obra de Bergman em seus principais títulos poderá dar, a quem possua tendências religiosas e teístas, uma sensação de desnorteio pois, vendo “A fonte da donzela”, onde o diretor explora uma história que ressoa a folclore religioso medieval, há uma prova concreta de milagre. Um milagre que se assenta num sacrifício humano atroz, quando uma garota muito pura se infiltra numa floresta para ir a uma cerimônia numa cidade próxima e, no caminho, é estuprada e morta. Para cúmulo do patético, os estupradores assassinos encontrarão hospedagem na casa de seus pais, que estranham a demora da filha a voltar de sua jornada. Um pai devoto, desesperado, praticamente cobrará de Deus que lhe explique o horror do que aconteceu a ela, assim que toma conhecimento do assassinato, e não hesitará em se vingar de seus hóspedes. Vingar-se daqueles brutos injustificáveis terá sentido, mas clamar aos céus, a um Deus indiferente, terá algum? Ainda que não tenha, lá estará a água pura minando do local onde a pobre moça foi sacrificada à estupidez e à luxúria dos loucos.

filme "A fonte da donzela"


Em “O ovo da serpente”, filme sobre o início do nazismo que Bergman filmou na Alemanha, Manuela (Liv Ullmann), mulher muito sofrida ligada a um americano em Berlim (David Carradine), cheia de culpa, vai se confessar a um padre e eis o que ouve: "Vivemos muito longe de Deus, tão longe que com toda certeza ele não nos ouviria se lhe pedíssemos ajuda. Por isso, devemos ajudar-nos uns aos outros. Devemos dar aos outros este perdão que um Deus remoto nos nega. Eu lhe digo que você está perdoada pela morte de seu marido, você não tem mais culpa alguma. Eu lhe peço perdão pela minha apatia e indiferença. Você me perdoa?".

Só mesmo num filme de Bergman um padre diria algo assim.
 


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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.

 

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