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Um pouco de Bergman: muito longe de Deus
Chico Lopes
É quase
impensável para hoje em dia, vendo ao que foi reduzido o Cinema nos
streamings (que, na verdade, atraem o público mais pelas séries), pensar
na possibilidade de surgir alguém como o cineasta sueco Ingmar Bergman,
falecido em 2007. Ele foi um homem muito culto cujo cinema tinha
filiações na filosofia de Kierkegaard, na literatura de Kafka, de
Strindberg e numa formação protestante que o atormentou na infância e de
cujas sombras ele nunca chegou a se livrar completamente. Seus filmes
não faziam concessões ao público e foram um longo aprendizado, cheio de
tropeços. Aos 89 anos, quando faleceu, deixou como legado uma obra
cinematográfica que dificilmente teria comparações. Para muitos, aliás
(Woody Allen um deles), ele foi o maior de todos os cineastas.
Não
era um cineasta que, vivo fosse, se adaptaria com facilidade aos tempos
atuais, quando o Cinema sofre com o peso de uma indústria cega,
excessiva, que explora o entretenimento mais brutal para sádicos num
mundo que parece estar doente de tanta violência e morbidez. Morbidez,
no caso de Bergman, estava só na pergunta que o desesperado cavaleiro
medieval de “O sétimo selo”, jogando xadrez com a própria Morte, lança
inutilmente aos céus enquanto a Morte se diverte com sua impotência para
encontrar qualquer resposta. Bergman ficou associado com um ateísmo
que era apenas a face de seu desespero humano e uma prova da sua
honestidade intelectual em reconhecer o que chamou, para seus filmes, de
“O Silêncio de Deus”. “O Silêncio”, aliás, foi título de um de seus
filmes mais densos, em que duas mulheres com uma criança, filho de uma
delas, estão perdidas numa viagem de trem por um país desconhecido cuja
língua não falam enquanto lá fora passam tanques atestando que ali
acontece uma guerra sem sentido, como toda guerra. Tanques e uma guerra
incompreensível também comparecem em “Vergonha”, onde um casal (Liv
Ullmann e Max von Sydow) acredita poder viver alheio ao contexto social
de um país indefinido que está envolvido num conflito insondável. O
conflito chegará a eles, que serão submetidos à sordidez e às
humilhações dos comandantes da guerra, perplexos e postos naquela
situação tipicamente kafkiana de não-entendimento diante do que lhes
acontece. A guerra provavelmente era o epítome do absurdo humano para
Bergman, pois vemos no início do que muitos consideram a obra-prima do
diretor sueco, “Persona”, a famosa cena de horror do monge budista
ateando fogo a si próprio em cena da guerra do Vietnam. A cena está
entre outras tantas que constituem um pesadelo fragmentado que acabará
com aquele efeito famoso da fita que se queima na tela, diante do olhar
e do tato de um menino perplexo.
Percorrer a obra de Bergman em seus
principais títulos poderá dar, a quem possua tendências religiosas e
teístas, uma sensação de desnorteio pois, vendo “A fonte da donzela”,
onde o diretor explora uma história que ressoa a folclore religioso
medieval, há uma prova concreta de milagre. Um milagre que se assenta
num sacrifício humano atroz, quando uma garota muito pura se infiltra
numa floresta para ir a uma cerimônia numa cidade próxima e, no caminho,
é estuprada e morta. Para cúmulo do patético, os estupradores assassinos
encontrarão hospedagem na casa de seus pais, que estranham a demora da
filha a voltar de sua jornada. Um pai devoto, desesperado, praticamente
cobrará de Deus que lhe explique o horror do que aconteceu a ela, assim
que toma conhecimento do assassinato, e não hesitará em se vingar de
seus hóspedes. Vingar-se daqueles brutos injustificáveis terá sentido,
mas clamar aos céus, a um Deus indiferente, terá algum? Ainda que não
tenha, lá estará a água pura minando do local onde a pobre moça foi
sacrificada à estupidez e à luxúria dos loucos.
filme "A fonte da
donzela"
Em “O ovo da
serpente”, filme sobre o início do nazismo que Bergman filmou na
Alemanha, Manuela (Liv Ullmann), mulher muito sofrida ligada a um
americano em Berlim (David Carradine), cheia de culpa, vai se confessar
a um padre e eis o que ouve: "Vivemos muito longe de Deus, tão longe que
com toda certeza ele não nos ouviria se lhe pedíssemos ajuda. Por isso,
devemos ajudar-nos uns aos outros. Devemos dar aos outros este perdão
que um Deus remoto nos nega. Eu lhe digo que você está perdoada pela
morte de seu marido, você não tem mais culpa alguma. Eu lhe peço perdão
pela minha apatia e indiferença. Você me perdoa?".
Só mesmo num filme
de Bergman um padre diria algo assim.
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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.
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Direção e Editoria
Irene Serra
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