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A infância contaminada pelo horror dos adultos
Chico Lopes
"Na sala escura" (A arte de sonhar com os olhos abertos), livro de Chico
Lopes, pela editora Penalux
Os fãs de filmes de terror costumam fazer suas listas de favoritos e procuram
saber sempre, entre si, quais são os de uns e outros. Os nomes inevitáveis de
filmes que surgem são sempre “O exorcista”, “O iluminado” e “O bebê de
Rosemary”, realmente filmes que marcaram época no gênero e continuam a dar
arrepios a quem não chegou a vê-los e cismam de conhecê-los agora. Meu filme de
terror favorito não é nenhum desses três, embora eles sejam muito respeitáveis,
mas é que não sou de fazer listas, visto que o espectador de cinema está sempre
aberto a novidades e a lista pode mudar (o recente “Hereditário” me pareceu
forte candidato a entrar em todas as listas a partir de seu lançamento; é um
filme perturbador de fato).
Meu filme favorito é “Os inocentes”, bem
antigo, de 1961, do inglês Jack Clayton. Baseado em uma novela famosa, “A volta
do parafuso”, de Henry James, que consiste na narração de uma mocinha tímida
contratada como preceptora de duas crianças órfãs no interior da Inglaterra,
numa propriedade chamada Bly. O tio dessas crianças, um dândi londrino,
herdou-as de um irmão morto, elas são para ele sobrinhos importunos e não quer
que sua vida frívola seja atrapalhada por esses estorvos. A preceptora,
inexperiente em termos mundanos, deslumbrada pelo contratante sedutor, vai para
a propriedade e apaixona-se pela beleza, a vivacidade e a candura das duas
crianças, um menino, Miles e uma menina, Flora. Mas aos poucos descobrirá, sob
as superfícies encantadoras, que há algo muito estranho com elas.
No
livro original de Henry James, a narração é muito indireta, começando por um
narrador que se dispõe a entreter senhoras de um grupo seleto com uma história
de fantasmas. Talvez para causar frissons, ele diz que a história é verdadeira e
lhe veio através de uma preceptora que ele conheceu quando por ela instruído,
ressaltando que a admirava muito. A admirável preceptora legou-lhe esse texto,
uma narrativa em primeira pessoa que terá muito de desconcertante e causará no
leitor a impressão de que esse preâmbulo de James, mestre em artifícios
despistadores, pode ser um tanto desconfiável. Na verdade, a maioria dos
leitores achou que a preceptora teria ajustado essa história em função da
admiração que lhe tinha o narrador inicial, mostrando-se uma heroína corajosa
diante de uma situação realmente insólita, e que muito do que ela narra não
passaria dos devaneios de uma moça imaginativa. Ela, com sua formação de
provinciana, vinda de uma família muito puritana, é um pouco como a “Jane Eyre”,
uma mocinha romântica que vai parar num ambiente estranho e infernal onde reina
a perversidade. Os tons de perversidade sexual serão logo acentuados assim que
soubermos que a propriedade teve uma preceptora anterior, Mrs. Jessel, e um
certo criado, Peter Quint, muito próximo ao patrão (o tio dândi e egoísta), e
que havia entre eles um romance escandaloso, sobre o qual Mrs. Grose, criada
analfabeta, faz menções temerosas à preceptora.
Podemos imaginar de tudo,
em termos de perversidade, a partir dos dados indiretos que a novela semeia, e
isso é que a torna extraordinária. Há sugestões de pedofilia, incesto,
sadomasoquismo e coisas de tal modo assustadoras que isso só faz com que a
história de horror se acentue, pois está impregnada de possibilidades
apavorantes na imaginação de uma mulher reprimida. Foi um sucesso tão grande que
até hoje muita gente, quando nos referimos a Henry James, só o conhecem através
dessa novela (e se trata de um romancista prolífero, com uma obra
consideravelmente extensa). Oscar Wilde chamou a novela de “sinistra e
peçonhenta”. Mas há uma corrente subterrânea tanto de desespero quanto de
melancólica poesia nessa história, pelo abandono em que se encontram as duas
crianças, órfãs e dependentes de um tio que quer ficar longe delas o máximo
possível. Entregues a brincadeiras que ficam só entre elas, servidas por uma
imaginação e uma inteligência bem precoces, elas dependem demais do pequeno
mundo tecido por suas fantasias. Na verdade, um livro sobre Henry James, a
ficção biográfica chamada “O Mestre”, de Cólm Tóibin, deixa claro que James via
nessas duas crianças a situação real por ele vivida, com sua irmã, Alice, uma
garota que foi depois uma mulher tragicamente doente que perturbou bastante sua
vida. A atmosfera de isolamento que tinha com Alice, ambos solitários e
diferentes do resto da família James, são transportadas para a Flora e o Miles
da novela. Arrepia-nos essa orfandade cercada por um mundo adulto que a
contamina, e essa contaminação viria então tanto dos fantasmas de Mrs. Jessel e
Peter Quint (fossem ou não sórdidos como o livro sugere) quanto das fantasias
temerosas da preceptora, uma mulher cuja inexperiência sexual parece notória.
O filme – um acerto total com relação ao livro do qual foi adaptado, o que
não é comum na história das adaptações literárias no Cinema - tem uma qualidade
rara, a mistura do inocente com o tenebroso, e isso já se desenha na formidável
abertura em que se ouve uma cantiga infantil cuja letra é uma lúgubre alusão a
uma das personagens aterradoras do filme. Mas esse lúgubre tem muito de poético
e, como a seguir vemos mãos femininas (da preceptora) se crispando na escuridão,
sabemos que adentraremos num território de dores transcendentes. Em termos de
poesia, nem é preciso citar o momento em que o pequeno Miles, numa apresentação
teatral feita especialmente para a preceptora, diz que lerá um poema, e este
poema deixará claro como ele estaria possuído pelo espírito de Peter Quint. A
preceptora é, a meu ver, o melhor papel da carreira (em geral brilhante) da
grande atriz inglesa Deborah Kerr, e o elenco não poderia ter sido melhor
escolhido. É pródigo em sustos, mas sustos com arte e não “jump scares”
gratuitos. É, aliás, um filme de arte devido à belíssima fotografia em
preto-e-branco de Freddie Francis e os cuidados detalhistas da produção de
época. Filmaço, e de vez em quando me ponho a revê-lo só para ter certeza de que
o gênero Terror, muito avacalhado pelos streamings da vida, pode ser Cinema da
maior qualidade..
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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.
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Direção e Editoria
Irene Serra
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