01/02/2025
Ano 27
Semana 1.403




ARQUIVO
Imagens e Letras







 

Fazendo resenhas em revista feminina e
atacando grandes cineastas: outros Borges



Chico Lopes


Eis alguns livros de Jorge Luis Borges que talvez sejam conhecidos por certo número de borgeanos, mas, sendo alguns existentes só em edições importadas, certamente não tiveram um grande número de leitores.

SOBRE O BUDISMO

Para gostar de Buda, não é necessário ser budista. Até onde me consta, Borges não o era. Ele escreveu “Buda” com ajuda de Alicia Jurado (edição da Bertrand Brasil), a meu ver, por se interessar pela religião budista da mesma forma como se interessaria por qualquer outra forma de História imbricada em Lenda.

Gostando como gostava de documentos apócrifos, mistificações prováveis ou improváveis, trafegando entre Ficção e História como se as duas fossem grandes categorias arbitrárias que não merecessem mais que uma apreciação no fundo bastante incrédula e brincalhona, Borges jamais se configuraria como um religioso ou devoto típico. Tinha humor demais para isso, e, como todo humorista, via tudo com um relativismo saudável.

Quem o conhece, sabe inclusive que ele deve ter se interessado por Buda devido à admiração que tinha por Schopenhauer: este dava ao budismo muita importância no corpo de sua filosofia. Descrevendo a Vontade como uma coisa inevitável e fadada ao malogro, Schopenhauer via no budismo, com sua negação de desejo, seu reconhecimento do sofrimento como fruto deste, um complemento às suas idéias. O pessimismo de Schopenhauer o levava a direções parecidas às da doutrina budista: é preciso livrar-se do ego sofredor, mergulhar no Nirvana, abençoar o Nada.

É um livro bastante leve e parece despretensioso, mas Borges está nele, sem dúvida alguma. Ele conta a história, ou histórias, de Buda, dá um resumo, em linhas bem claras, de suas ideias, e fala um pouco da repercussão destas no Oriente e no Ocidente. Buda se torna em suas mãos um personagem curioso, mais lendário que histórico, mais mítico que outra coisa, o que não destoa, visto que ele nos lembra logo no início que a distinção entre Lenda e História só faz sentido para os ocidentais. Os indianos, segundo ele, têm um soberbo desprezo para com essa distinção, não querem saber de cronologias, simetrias, histórias bem situadas, lógicas, preferindo as ideias que se possa transmitir, mesmo pelos meios mais bizarros. São reveladoras algumas frases sobre o Karma que Borges cita, de Christmas Humphreys: “Ao pecador, não o castigam por seus pecados; são estes que o castigam. Por conseguinte, o perdão não existe e ninguém pode outorgá-lo”. No entanto, “nem no céu, nem na metade do mar, ou nas fendas mais profundas das montanhas existe um lugar em que um homem possa libertar-se de uma ação perversa”.

EM MEIO A BOLACHAS E LATAS DE SARDINHA

Entre 1936 a 1939, uma revista feminina de Buenos Aires (de que acho que poucos brasileiros ouviram falar), chamada “El Hogar”, teve Borges como colaborador. Estas resenhas foram reunidas por Emir Rodríguez Monegal e Enrique Sacerio-Garí num livro charmoso, que traz inclusive reproduções de propagandas da época (algumas são involuntariamente engraçadas, considerando o seu anacronismo) – a editora é a Tusquet Editores, de Barcelona.

Vamos ver Borges completo nessas resenhas com ares ocasionais e circunstanciais, mas organizadas em livro, e escritas por ninguém menos que ele, dotadas de uma aura de importância que não devia, claro, ser perceptível, pelas donas de casa argentinas da época. Deviam estar mais atentas às propagandas de sardinha e bolachas. Borges perdido no meio disso parece uma condessa anônima passando por uma feira de peixe.
Que tal ver “O processo”, de Kafka, chegando, estalando de novo, a um leitor dessa magnitude? E o que ele achava de Virginia Woolf, Joyce, Oscar Wilde, Faulkner etc? É curiosa a abundância de títulos de um escritor como H.G Wells, hoje em dia um autor pouco lembrado. Mas Borges, anglófilo, se detém sobre autores ingleses inclusive menores como Arthur Machen com uma complacência característica. A maioria dos escritores resenhados ou biografados passou da moda, difícil que alguém hoje em dia tenha ideia de quem foram, e uma boa parte desses livros – principalmente os policiais, gênero que Borges respeitava, mas não hesitava em condenar à morte, quando malsucedido – acabou em alguma lixeira. Mas o que importa é o resenhador.

Que habilidade para desprezar ou exaltar Borges possuía! Que ceticismo mais refinado! Às vezes é quase impossível não se dar uma boa risada diante de alguma observação sua, tão mais engraçada por Borges cultuar o understatement, dizendo disparates arrematados em tom sério.

Borges, em textos sempre curtos (um mérito dele, entre tantos, era saber usar com rara inteligência os espaços que lhe eram destinados na imprensa careta, como Machado de Assis sabia usar o “Jornal das Famílias” para publicar seus contos sutilmente subversivos), enveredava por temas que depois ficariam trágicos como o germanismo, o anti-semitismo, e destrinchava tudo com uma posição sempre original.

Nas questões de política e ideologia, sabemos que foi muito criticado, mas tinha lá o seu característico humanismo de esteta, sua preocupação prioritária com os deleites da arte e da inteligência. Borges falou muita besteira em épocas difíceis da política argentina, besteiras que irritaram a esquerda e o indispuseram com nomes como o de Ernesto Sábato, mas essas polêmicas parecem estar virando uma poeirinha comparada à grandeza que o tempo foi conferindo à sua efígie (grandeza, por outro lado, não destituída de alguns oficialismos equivocados; há muita gente querendo usar Borges de maneira tortuosa também, assim como há um Proust de coluna social que uma antiga direita ainda invoca como símbolo seu, para validar sua visão formol do Mundo). O livro é delicioso e precisa ser conhecido assim, na edição importada.

ATACANDO HITCHCOCK, WELLES E CHAPLIN

“Do Cinema” é outro livro menos conhecido de Borges. É uma edição da Horizonte, de Lisboa, dentro da coleção “Horizonte de Cinema”, e só o conheço importado (se há edições nacionais, corram descobrir, os que são cinéfilos). Aqui, é particularmente divertido ver Borges se detendo sobre filmes clássicos com a sua lente peculiar: ele nunca diz o esperado e o óbvio e não se deslumbra com gente como Hitchcock, Chaplin ou Welles como hoje em dia nos deslumbramos naturalmente. Na época em que foram escritos esses ensaios, difícil dizer que a cinefilia tivesse uma aura de importância cultural como hoje em dia. Donde o ligeiro desprezo do homem de Letras pelo Cinema, que se insinua.

Mas a inteligência analítica está lá, e Borges é perspicaz como só Borges seria. Inclusive, numa opinião que já se tornou famosa, lembra que o “western” recuperou para o século XX o gosto pelo Épico. Ficou apavorado com a adaptação de Conrad, de “O agente secreto”, feita por Hitchcock, com o título brasileiro de “O marido era o culpado”, achou que Rouben Mamoulian destruiu a beleza e a sutileza de “O médico e o monstro”, de Stevenson, e, quanto ao “Cidadão Kane”, disse, apesar de sua admiração: “Atrevo-me a suspeitar, no entanto, que “Citizen Kane” perdurará como “perduram” certos filmes de Griffith ou de Pudovkin, cujo valor histórico ninguém nega, mas que ninguém se resigna a rever. Padece de gigantismo, de pedantismo, de tédio. Não é inteligente, é genial: no sentido mais noturno e mais alemão dessa má palavra.”

Mais herético ainda foi o que disse de “Luzes da cidade” (vou citar, omitindo trechos): “A sua carência de realidade só é comparável à sua carência, também desesperante, de irrealidade. “City lights” não consegue essa irrealidade e mostra-se inconvincente. Com exceção da cega luminosa, que tem o extraordinário da formosura, e do próprio Charlie, sempre tão disfarçado e tão tênue, todas as personagens são temerariamente normais. O seu destrambelhado argumento pertence à difusa técnica conjuntiva de há vinte anos. Arcaísmo e anacronismo são também gêneros literários, eu sei; mas a sua utilização deliberada é diferente de sua perpetração infeliz. Declaro a minha esperança – demasiada vezes satisfeita – de não ter razão.”

Descontadas as diferenças de linguagem entre o português de Portugal e o do Brasil e exigindo paciência e perspicácia dos leitores brasileiros para decifrarem os títulos que os filmes receberam em terras de Pessoa, o livro é muito saboroso. Vale conhecê-lo, e rápido.


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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.



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Irene Serra

Revista Rio Total