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Fazendo resenhas em revista feminina e atacando grandes cineastas:
outros Borges

Chico Lopes
Eis alguns livros de Jorge Luis Borges que talvez sejam conhecidos por
certo número de borgeanos, mas, sendo alguns existentes só em edições
importadas, certamente não tiveram um grande número de leitores.
SOBRE O
BUDISMO
Para gostar de Buda, não é necessário ser budista. Até onde me
consta, Borges não o era. Ele escreveu “Buda” com ajuda de Alicia Jurado (edição
da Bertrand Brasil), a meu ver, por se interessar pela religião budista da mesma
forma como se interessaria por qualquer outra forma de História imbricada em
Lenda.
Gostando como gostava de documentos apócrifos, mistificações
prováveis ou improváveis, trafegando entre Ficção e História como se as duas
fossem grandes categorias arbitrárias que não merecessem mais que uma apreciação
no fundo bastante incrédula e brincalhona, Borges jamais se configuraria como um
religioso ou devoto típico. Tinha humor demais para isso, e, como todo
humorista, via tudo com um relativismo saudável.
Quem o conhece, sabe
inclusive que ele deve ter se interessado por Buda devido à admiração que tinha
por Schopenhauer: este dava ao budismo muita importância no corpo de sua
filosofia. Descrevendo a Vontade como uma coisa inevitável e fadada ao malogro,
Schopenhauer via no budismo, com sua negação de desejo, seu reconhecimento do
sofrimento como fruto deste, um complemento às suas idéias. O pessimismo de
Schopenhauer o levava a direções parecidas às da doutrina budista: é preciso
livrar-se do ego sofredor, mergulhar no Nirvana, abençoar o Nada.
É um
livro bastante leve e parece despretensioso, mas Borges está nele, sem dúvida
alguma. Ele conta a história, ou histórias, de Buda, dá um resumo, em linhas bem
claras, de suas ideias, e fala um pouco da repercussão destas no Oriente e no
Ocidente. Buda se torna em suas mãos um personagem curioso, mais lendário que
histórico, mais mítico que outra coisa, o que não destoa, visto que ele nos
lembra logo no início que a distinção entre Lenda e História só faz sentido para
os ocidentais. Os indianos, segundo ele, têm um soberbo desprezo para com essa
distinção, não querem saber de cronologias, simetrias, histórias bem situadas,
lógicas, preferindo as ideias que se possa transmitir, mesmo pelos meios mais
bizarros. São reveladoras algumas frases sobre o Karma que Borges cita, de
Christmas Humphreys: “Ao pecador, não o castigam por seus pecados; são estes que
o castigam. Por conseguinte, o perdão não existe e ninguém pode outorgá-lo”. No
entanto, “nem no céu, nem na metade do mar, ou nas fendas mais profundas das
montanhas existe um lugar em que um homem possa libertar-se de uma ação
perversa”.
EM MEIO A BOLACHAS E LATAS DE SARDINHA
Entre 1936 a 1939, uma revista feminina de Buenos Aires (de que acho que poucos
brasileiros ouviram falar), chamada “El Hogar”, teve Borges como colaborador.
Estas resenhas foram reunidas por Emir Rodríguez Monegal e Enrique Sacerio-Garí
num livro charmoso, que traz inclusive reproduções de propagandas da época
(algumas são involuntariamente engraçadas, considerando o seu anacronismo) – a
editora é a Tusquet Editores, de Barcelona.
Vamos ver Borges completo
nessas resenhas com ares ocasionais e circunstanciais, mas organizadas em livro,
e escritas por ninguém menos que ele, dotadas de uma aura de importância que não
devia, claro, ser perceptível, pelas donas de casa argentinas da época. Deviam
estar mais atentas às propagandas de sardinha e bolachas. Borges perdido no meio
disso parece uma condessa anônima passando por uma feira de peixe. Que tal
ver “O processo”, de Kafka, chegando, estalando de novo, a um leitor dessa
magnitude? E o que ele achava de Virginia Woolf, Joyce, Oscar Wilde, Faulkner
etc? É curiosa a abundância de títulos de um escritor como H.G Wells, hoje em
dia um autor pouco lembrado. Mas Borges, anglófilo, se detém sobre autores
ingleses inclusive menores como Arthur Machen com uma complacência
característica. A maioria dos escritores resenhados ou biografados passou da
moda, difícil que alguém hoje em dia tenha ideia de quem foram, e uma boa parte
desses livros – principalmente os policiais, gênero que Borges respeitava, mas
não hesitava em condenar à morte, quando malsucedido – acabou em alguma
lixeira. Mas o que importa é o resenhador.
Que habilidade para desprezar
ou exaltar Borges possuía! Que ceticismo mais refinado! Às vezes é quase
impossível não se dar uma boa risada diante de alguma observação sua, tão mais
engraçada por Borges cultuar o understatement, dizendo disparates arrematados em
tom sério.
Borges, em textos sempre curtos (um mérito dele, entre
tantos, era saber usar com rara inteligência os espaços que lhe eram destinados
na imprensa careta, como Machado de Assis sabia usar o “Jornal das Famílias”
para publicar seus contos sutilmente subversivos), enveredava por temas que
depois ficariam trágicos como o germanismo, o anti-semitismo, e destrinchava
tudo com uma posição sempre original.
Nas questões de política e
ideologia, sabemos que foi muito criticado, mas tinha lá o seu característico
humanismo de esteta, sua preocupação prioritária com os deleites da arte e da
inteligência. Borges falou muita besteira em épocas difíceis da política
argentina, besteiras que irritaram a esquerda e o indispuseram com nomes como o
de Ernesto Sábato, mas essas polêmicas parecem estar virando uma poeirinha
comparada à grandeza que o tempo foi conferindo à sua efígie (grandeza, por
outro lado, não destituída de alguns oficialismos equivocados; há muita gente
querendo usar Borges de maneira tortuosa também, assim como há um Proust de
coluna social que uma antiga direita ainda invoca como símbolo seu, para validar
sua visão formol do Mundo). O livro é delicioso e precisa ser conhecido assim,
na edição importada.
ATACANDO HITCHCOCK, WELLES E CHAPLIN
“Do
Cinema” é outro livro menos conhecido de Borges. É uma edição da Horizonte, de
Lisboa, dentro da coleção “Horizonte de Cinema”, e só o conheço importado (se há
edições nacionais, corram descobrir, os que são cinéfilos). Aqui, é
particularmente divertido ver Borges se detendo sobre filmes clássicos com a sua
lente peculiar: ele nunca diz o esperado e o óbvio e não se deslumbra com gente
como Hitchcock, Chaplin ou Welles como hoje em dia nos deslumbramos
naturalmente. Na época em que foram escritos esses ensaios, difícil dizer que a
cinefilia tivesse uma aura de importância cultural como hoje em dia. Donde o
ligeiro desprezo do homem de Letras pelo Cinema, que se insinua.
Mas a
inteligência analítica está lá, e Borges é perspicaz como só Borges seria.
Inclusive, numa opinião que já se tornou famosa, lembra que o “western”
recuperou para o século XX o gosto pelo Épico. Ficou apavorado com a adaptação
de Conrad, de “O agente secreto”, feita por Hitchcock, com o título brasileiro
de “O marido era o culpado”, achou que Rouben Mamoulian destruiu a beleza e a
sutileza de “O médico e o monstro”, de Stevenson, e, quanto ao “Cidadão Kane”,
disse, apesar de sua admiração: “Atrevo-me a suspeitar, no entanto, que “Citizen
Kane” perdurará como “perduram” certos filmes de Griffith ou de Pudovkin, cujo
valor histórico ninguém nega, mas que ninguém se resigna a rever. Padece de
gigantismo, de pedantismo, de tédio. Não é inteligente, é genial: no sentido
mais noturno e mais alemão dessa má palavra.”
Mais herético ainda foi o
que disse de “Luzes da cidade” (vou citar, omitindo trechos): “A sua carência de
realidade só é comparável à sua carência, também desesperante, de irrealidade.
“City lights” não consegue essa irrealidade e mostra-se inconvincente. Com
exceção da cega luminosa, que tem o extraordinário da formosura, e do próprio
Charlie, sempre tão disfarçado e tão tênue, todas as personagens são
temerariamente normais. O seu destrambelhado argumento pertence à difusa técnica
conjuntiva de há vinte anos. Arcaísmo e anacronismo são também gêneros
literários, eu sei; mas a sua utilização deliberada é diferente de sua
perpetração infeliz. Declaro a minha esperança – demasiada vezes satisfeita – de
não ter razão.”
Descontadas as diferenças de linguagem entre o português
de Portugal e o do Brasil e exigindo paciência e perspicácia dos leitores
brasileiros para decifrarem os títulos que os filmes receberam em terras de
Pessoa, o livro é muito saboroso. Vale conhecê-lo, e rápido.
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Chico Lopes é escritor e pintor, 72 anos, publicou mais de 50 livros entre próprios e traduzidos. Cinéfilo, foi por 18 anos comentarista de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas. Mora em Poços de Caldas desde 1992. Recentemente, recebeu o troféu "Escritor Sulfuroso", representando a literatura de Poços no Flipoços 2024.
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Direção e Editoria
Irene Serra
Revista Rio Total
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