16/09/2023
Ano 26
Semana 1.335



 

ARQUIVO GERAL





 

Lílian Maial




SEXTA-FEIRA TREZE

debaixo da escada
um gato preto
me alisou as coxas
e me chamou de bruxa

não tinha mandinga
nem galho de arruda

o danado cheirava a benjoim
sua boca, um gosto de alho

me revirou do avesso
quebrou espelhos
e eu sabia que teria sete
sete, sim, múltiplos, um a um

coruja piou, sapo coaxou
e o gato me deu um banho
sete ervas, sete léguas
sete línguas

azar? o seu...





CANTO DE AMOR nº XV

Dizer teu nome é evocar calafrios e galopes no peito!
Ó, filho abençoado!
Criatura nascida de campos floridos,
Onde pequenos esquilos e coelhos se escondem na folhagem!
O que me cerca de mimos e iguarias,
O que me chama para o leito de relva e almíscar,
Para que a noite seja suave e perfumada,
Como seus cabelos de sândalo!
Ó, amado! O que tem mais de apascentar os rebanhos dos meus anseios,
De agitar o mar do meu ventre!
Aquele dos braços de ciprestes, pernas de cedro do Líbano,
Rosto formoso, qual macieira num bosque harmonioso num dia de sol!
Deita-me em tua sombra!
Dá-me de provar teu fruto!
Eu, tua prometida dentre todas as filhas do amor!
A das palavras aladas, a que recebeu a visitação divina,
A que vislumbrou a perdição e o Parnaso em teus olhos!
Vem, amado, e dorme em meu colo, que adormeço a teu lado, mesmo que meu coração não repouse!
E que nenhum som ouse perturbar-te!
Nem o vento, nem o simples cair das folhas dos galhos!
Silêncio!
Silêncio, que meu amor dorme em paz!




POEMA DE OUTONO

Eu vi um verso vadio vagando na várzea.
Um verso de mais de metro, soltando rimas ao vento.
Fazia frio e o poema era de outono.
Tinha um pôr do sol nas bordas das dúvidas,
um ocaso trêmulo de expectativas.
Às vezes, uma gaivota interrogava o entardecer.
Vinha um bando de folhas atapetar o caminho da noite,
rastro da lua, milagre de ouro em prata.

Eu vi um poeta pisar na poça.
Parir quartetos inquietos e tercetos insones.
Era tarde e a madrugada suava de nervosa.
Vez por outra, um bêbado tropeçava numa letra vagabunda,
pé quebrado atrapalhando a poesia,
e seguia o bardo sem teto e sem mantra,
fazendo que não via a mula sem cabeça.

Eu vi um sol nascer branquinho,
cheirando a pão com manteiga,
chamando o verso vadio para o dia.
Ainda havia neblina nas palavras
e o poeta sentou-se à mesa,
entre hifens e vírgulas,
se empanturrando de café com sonho.
Lá adiante, na linha do horizonte,
uma andorinha alinhavava uma chave de ouro.




SONETO PARA BRADAR AO AMOR

Não seja o amor um canto para a guerra,
Um banho em sangue à clara flor do riso!
Que seja a paz, a cor que o peito espera!
Que seja a luz, a seda em que deslizo!

Não seja o amor a voz que dilacera,
A mão que bate, o corte mais preciso!
Que seja a calma a ungir nós dois - quem dera -
Pudesse abrir caminhos de improviso!

Que seja o amor, então beleza augusta,
Canto de ave em plena arribação,
Como o teu beijo, afago tão perfeito!

Que seja o amor a flor da causa justa,
Seja o calor que atreve ser perdão,
Ou só nós dois, o enlace em nosso leito!





MEMÓRIA LÍQUIDA

O conforto das águas vem da
memória uterina:
aconchego e silêncio.
Como o mar,
calmaria e medo,
envolvente e assustador.

Tenho essa atração pela água.
O sangue, a saliva, o suor.

Sangrar traz esse poder das águas e das marés.

Nascimento e morte.
Líquido amniótico e putrilagem.
Nascemos na água e, na morte, liquefação.

A água escorre pela testa, nos dias quentes,
se insinua pelo corpo, no banho e na chuva,
encharca de prazer.

Lembrança atávica,
as águas me banham como aos ancestrais:
levam o que perdi,
trazem o que não pedi,
redimem, remexem, refluem.

Sou água, sangue e suor.
Chovo pelos olhos, pelas bocas
Invado, derrubo barreiras, escoo.
Sangro por natureza, germino,
paro em carmim e suor,
mulher líquida.

Por vezes, acordo tempestades e veemências,
deixo o vendaval arrastar desgostos.
Brinco na água, que me acaricia indolente.
Evaporo dores.
Placento-me.





DE LUA

Ela não é frágil dama,
Tanto quanto não sou tão forte.

Ambas contempladas,

Ela posa cheia de si,
A cada vinte e oito dias,

E eu sangro.





POR UNA CABEZA

Teu cheiro é tango
Teus passos, planos
Rosa entre os dentes
Segredos rentes
se sou perita
"la cumparsita"

Caio e me arrasto
Perante os pés

Sou teu brinquedo
Morra de medo
Dessa parceira
Tão inequívoca
Eu sou carnívora
Tua rameira

Teu gosto é tango
Teu olho, afronta
És meu maestro
Sou violino
Me ordena puta
me entrega a conta
me esfrega a ponta
dessa batuta

Falta-me o ar
Por essas patas
Corcel nos peitos
Égua a voar

não tomo jeito
sou picareta
na tua boca
eu sou canção
e no salão
pura perfídia
jogo a orquídea
na contramão

e o menestrel
nos devaneios
boca nos seios
sugando o mel

bolinei o traseiro de Gardel!





MARIA

Não me chamo Maria,
mas gerei o escolhido,
pois que todos os filhos são escolhidos,
com o peso da salvação sobre seus ombros.

Não me chamo Maria,
mas senti a impotência da mãe,
que vê seu filho sangrar,
sem conseguir estancar.

Não me chamo Maria,
mas carrego a cruz do amor indizível,
a dor do peito pleno de maternidade e morte,
do jogo de gozo e lágrimas do caminho.

Não me chamo Maria,
mas sei da crucificação em via pública,
da lança perfurando o futuro,
do manto do desespero a cobrir as chagas.

Não me chamo Maria,
mas vejo a última expiração do meu filho,
de todos os filhos,
dos escolhidos e esquecidos,
dos que nasceram puros e amaldiçoados,
marcados pelo o fio da lâmina.

Não me chamo Maria,
mas sou maria.
Sou todas as marias que velam seus frutos.

As que ficaram.





ADEJOS

Assim como as aves migram nas estações,
O sono vem precoce na noite.
De nada adianta a prece das árvores,
Ou a pressa dos rios,
Ele traz seu véu de penumbra,
Uma tênue cortina de silêncios
E cobre toda memória das coisas.

É tempo de repousar senões,
Talvez adormecer as dores,
Sob essa névoa de opacidade.

Não há olhos na escuridão.

Ah! Uma pequenina estrela que fosse!
A suave ilusão de luz!

Mas tudo é fosco nesse sono indesejado.

A curva no contorno do minuto,
Aquele segundo sinuoso que nada significa,
E, de pronto, chega o manto frio,
O acalento do desnecessário,
A imobilidade do que não tem fim.





MAQUIAGEM

Olho roxo.
Sombra cabisbaixa nas pálpebras.
O amor dissolvido em unguentos nas órbitas,
azulando, esverdeando, amarelando...
Mas as entranhas sangram rubras
e o vermelho tinge a promessa.
E dói.
Mais que o olho,
mais que o soco.
Dói tanto, que a voz some.
Dói, que cala.

Nunca mais os olhos verdes de horizontes.
Nunca mais a criança acenaria nas pequenas coisas.
O murro na alegria,
na entrega,
nverdade.

O olho roxo se perpetuaria.
Repete-se na perplexidade.
O amor mudou de cor.
A cor mudou de dor.
A dor emudeceu.
Amor doente.
A morte.





HAIKAI DE INVERNO

seco chão dourado
amendoeira sem folhas
despede-se o inverno

 


  Lílian Maial é carioca, médica, escritora e poeta. Publicou o livro de poemas “Enfim, renasci!”, em 2000, e "Duetto", em 2019, numa homenagem póstuma ao poeta e amigo Nathan de Castro, parceiro de versos. Participou de todas as “Antologias Poetrix”, desde 2002, e organizou a Antologia Poetrix 8 - Infinito. Ocupa a cadeira nº 12 da Academia Internacional Poetrix. Filiada à REBRA (Rede de Escritoras Brasileiras), participou de quatro antologias, lançadas em São Paulo, nas bienais do livro. Filiada à APPERJ (Associação de Poetas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro), publicou na Revista Plural. Publicou 3 livros infantis: “O Menino dos Olhos de Lua”, “O Bico da Laura” e “A Dor da Morte”. Tem lançamento do livro de bolsa “Realidade Fantástica” , de minicontos, no Vi Encontro Nacional do coletivo feminista Mulherio das Letras, em outubro/2023. Tem lançamento do livro de poemas “Canto dos Cantos de Amor”, também no mesmo evento, em outubro/2023.

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Direção e Editoria
Irene Serra