16/11/2014
Ano 24
Número 1.248


ARQUIVO
VIEGAS F. DA COSTA

Viegas Fernandes da Costa
 

Recordações do Sótão

 

Viegas Fernandes da Costa - CooJornal

Quando menino, as horas investidas sobre os papéis. Não eram palavras, mas traços, estradas que se desdobravam ao sabor da esferográfica, ato autômato, caminhos que percorriam meus pés alados de criança ociosa. Brincar de Deus era bacana, construtor de mundos. Começava com uma primeira folha de ofício, logo pequena. A esta colava-se outra, e outra, e outra, um enorme mapa desdobrando-se ante minha sanha criadora, tamanha sanha que não tardava preenchiam-se as folhas coladas umas às outras. Via-as ocuparem todo espaço do imenso sótão que habitava. Este era sempre meu limite, o sótão que habitava. Então passava horas namorando aqueles traços, emaranhados caóticos que se cruzavam, afastavam. E o mergulho naquela realidade virtual que minhas mãos haviam criado, cada linha uma estrada, uma avenida, um beco. Seria capaz de nominar todas, e eram centenas de milhares. Sim, centenas de milhares! Em meus delírios de guri, perdia-me naqueles caminhos. Sabia a localização dos rios, ribeirões, o rural e o urbano bem definidos. Eu realmente vivia aquele mundo, esquecido deste aqui. Não à toa, meus boletins escolares eram sempre desespero. Desenhar mundos foi meu escape, o esquecimento deste real esquizofrênico e dolorido. Hoje, crescido, tenho consciência do sótão roubado, dos gigantescos mapas lançados ao lixo, da vida que vivi intensa em meus delírios de infância. Hoje, as horas investidas sobre papéis. A palavra catarse que não é... não é! Que apenas devolve-me à consciência do absurdo que é estar neste real pastiche. Pudera encontrar a palavra traço inventora de mundos, passível de se desdobrar por todo sótão da minha memória, e seria livre. Mas isto já não é mais possível.



RT, 25 de maio/2014
CooJornal nº 893



Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor.
Autor dos livros "Sob a Luz do Farol" (Crônicas, 2005), "De Espantalhos e Pedras Também se Faz um Poema" (Poemas, 2008) e "Pequeno Álbum" (Contos, 2009).
Atualmente leciona História no Instituto Federal de Santa Catarina e é cronista do Jornal de Santa Catarina.
Reside em Blumenau, SC.


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