16/03/2021
01/01/2022
Ano 24
Número 1.254



 


ARQUIVO
RONALDO WERNECK

 

Ronaldo Werneck




Tribalização: Nascido para matar

Ronaldo Werneck - CooJornal

Leila Diniz, com sua cara de sapeca, me olha brincalhona de dentro deste cartaz que tenho aqui no quarto onde escrevo. Com sua trança de maria-chiquinha Leila está muito parecida com a coelhinha grávida, personagem assumido por minha filha Ulla no Baile do Havaí, aí na AABB. Ouvi muita gente dizendo: “nossa, com apenas 15 anos a Ulla já está grávida!”. Calma, pessoal, foi apenas carnaval. Quer dizer, molecagem mesmo. Mas, garanto, curtimos adoidado. Principalmente quando confundiram Ulla com minha suposta namorada. Ora, ora, por quem sois... a gente não “merecemos” tanto...

Mas foi um bom carnaval, com direito inclusive ao Cabedal e suas poções mágicas, que desfilou com o devido destaque num dos carros da Portela, lá das grimpas dos seus 103 anos, com o olhar absolutamente atônito para o casal de Adão-e-Eva tropicalista que rebolava frenético à sua frente. O carnaval de Cataguases é também tribo, tribalização de todos os instintos, inclusive do indistinto público. Um carnaval com Florismar na bateria da Portela, Chicão e seu bloco do “eu-sozinho” – e ainda por cima com o povo cheirando o rapé do Cabedal – tinha mesmo que abafar. Nunca vi a Avenida tão cheia. Não há dúvida, como a gente dizia nos bons tempos de 1958, “foi o terceiro melhor carnaval do Brasil”. Os outros dois? Ah, deve ter sido Dona Eusébia, Astolfo Dutra, por aí.

Bem, o carnaval acabou. Depois da tempestade, a tempestade. Após o furor momesco, a fúria de todos os outros deuses. O Rio está literalmente desabando. Muito triste. A Avenida Brasil está inundada, a Lagoa transbordou, um prédio acaba de desmoronar na Abolição. Um caos. Ou uma festa. Pelos menos, é como entendem os ladrões, que estão cobrando mil pratas de “pedágio” para os motoristas dos carros enguiçados debaixo do Viaduto das Forças Armadas, nas proximidades da Praça da Bandeira. Como dizia aquele fremente locutor durante a Copa do Mundo: Brassssssiiiiilllllllllllll!!!!!

Falar em Forças Armadas, nosso tripresidente chama de três patetas os integrantes da junta militar que entregou o poder a Médici em 69. É, por aí. Mas, talvez fosse melhor chamar de quatro patetas. Cala a boca, boca! Como diz Augusto Nunes em artigo publicado pelo Jornal do Brasil neste domingo, 21 de fevereiro, o assunto é muito sério, muito doloroso pra ser tratado na brincadeira. Ontem, na mesma seção de opiniões, página 11, o JB transcreve matéria de Jimmy Carter, publicada no New York Times, onde o ex-presidente dá sua receita sobre a melhor política para que a paz reine no Oriente Médio. Carter fala de cadeira. No final dos anos 70, ele articulou o encontro Sadat/Begin em Camp David, onde foi selada a paz entre Egito e Israel.

No Caderno Ideias, de sábado, Zé Celso Martinez extrai do caos de sua criatividade uma sacada dionisíaca e promete uma montagem revolucionária para As Bacantes. Após o assassinato de seu irmão, Zé Celso propõe uma volta à vida, e cita o célebre poema feito por Maiakovski após o suicídio de Iessiênin: “Morrer/ nesta vida/ é fácil./ O difícil/ é a vida/ e seu ofício”.

Engraçado como o tropicalismo está de volta. Não bastasse Zé Celso, que deflagrou o movimento no teatro — com a montagem do Rei da Vela, como Glauber fez no cinema com Terra em Transe —, agora surge Norma Bengell filmando o mito Pagu, musa e mulher de Oswald de Andrade, que foi o inspirador do movimento. La Bengell foi entrevistada ontem pela TVE e reclamou muito da seleção para o Festival de Berlim (não entrou nenhum filme brasileiro), principalmente de um alemão que declarou ser o nosso cinema muito caótico. “Ele precisava estudar mais a história de seu próprio país, pois foi através do caos que a Alemanha se recuperou no pós-guerra”. Não é bem por aí, Norminha. Certo que a criatividade venha do caos. Mas é preciso ordenar o caos, qualquer coisa como outro tropicalista, o não menos Gilberto Gil, está tentando fazer para se eleger prefeito de Salvador.

Como ele diz hoje, em entrevista ao BEspecial, “sou burguês, e na verdade posso ser visto no máximo como um representante que quer ampliar essa ressonância para abranger a sonoridade de segmentos cada vez mais extensos da massa. Estou portanto numa posição tolerante, de viver esse processo, de entender a qualidade eticamente gelatinosa, pouca sólida, dessas relações, de entender num sentido zen que há uma moral de ocasião... A grande moral não interessa, e sim a pequena moral. Porque sei, como dizia Gandhi, que Deus é a mesma substância que move a mão do assassino e o bisturi do cirurgião”. Com toda a sua ruibarbosidade, do alto de sua prolixa baianidade, Gil está tentando ordenar o caos, dar um discurso “lógico” (ou “zoo-ilógico”, como naquela sua canção?) à sua campanha. Mas, com tudo isso, et pour cause, se baiano fosse, seria seu “eleitor-de-cabresto”.

Saio pra ver Nascido pra Matar, o excelente filme de Stanley Kubrick sobre a Guerra do Vietnam. O filme é narrado por um marine, correspondente de guerra, e me lembrou uma jornalista que foi minha namorada e que teve um “causo” com um também correspondente de guerra. Na época, ela dizia pra me consolar: “Você entende, Ronaldo, o fulano tem muito mais experiência que você. Imagina, ele já esteve no Vietnam”. Eu sofria terrivelmente por ser um mero redator de segundo caderno, falando sobre nada mais do que amenidades. Acabei me “vingando” fazendo um poema sobre o Vietnam. Meus Deus, como a gente é idiota quando ama.

Interessante que, embora rodado na América, o filme de Kubrick é quase todo passado na base de Da Nang, posto avançado dos marines no Delta do Mekong. E Da Nang era exatamente uma das bases de sustentação de meu poema. Lembro de um fragmento: “entre thunderchiefs/ lazy-dogs/ entre phantoms/ em da nang/ exclamo eu te amo/ entre bull-púbis/ buldozzers/exclamo eu te amo/ da nang/ khe sahn/ no delta do mekong/ exclamo eu te amo/da nang/ quer sangue/ exclamo/ eu te amor-te”.

Depois do cinema, janto sozinho no restaurante do meu velho amigo Nogueira na PJ (pode me chamar de Prado Júnior), em pleno Baixo Copa. Sozinho, mas rodeado por todos os músicos e bailarinas da noite. O Nogueira continua o mesmo, inclusive a excelente sopa de legumes. A chuva volta a castigar fortemente a cidade. Enquanto espero a sopa, me ocorre um poema de Mário Faustino, que cai como uma chuva, quer dizer, como uma luva: “Sinto que o mês presente me assassina/ O temporal ladrão rouba-me as fêmeas/ E o tempo na verdade tem domínio/ Sobre homens nus ao sul de luas curvas”. Isso aí, os poetas, os verdadeiros poetas, têm esse insight, essa espécie de premonição. Mas é preciso voltar à vida, back in life, “celebrar a vida”, como diz o Zé Celso. Qualquer coisa como o correspondente de guerra no final do filme de Kubrick: “Nasci num mundo de merda... Mas estou vivo”. Já é uma grande coisa.


Bubbaloo 5
Jornal Cataguases/ 06.03.88



Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG

https://ronaldowerneck.blogspot.com/



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