16/03/2021
01/12/2021
Ano 24
Número 1.250



 


ARQUIVO
RONALDO WERNECK

 

Ronaldo Werneck




Mucho café, cigarro: no se preocupe

Ronaldo Werneck - CooJornal


Estive esta semana na Abifumo – Associação Brasileira da Indústria do Fumo, selecionando umas fotos para a Revista Cacex, que terá como tema de capa de uma das próximas edições o comportamento da indústria do fumo na pauta das exportações brasileiras. Vejam só o que achei: a reprodução de um selo colombiano onde o Señor Javier Pereira, do alto de seus 117 anos, nos dá a receita de longevidade: “No se preocupe. Tome mucho café. Fume un bueno cigarro”.

Pois é, Seu Javier, estou levando seu conselho a sério. Estatísticas recentes indicam que o brasileiro fuma, em média, 1.672 cigarros/ano, i.e., 4,6 cigarros/dia. Como fumo cerca de três maços de Charm/dia (atenção, Souza Cruz: quero “o meu” do merchandising) estou prestes a entrar no Guiness Book do fumacê. Quer dizer, a “entrar bem”: estou consumindo, em média, 22.000 cigarros/ano. Pode? Pode.

Embora venha tentando, ainda não consegui fumar dormindo nem tomando banho, mas tenho me esforçado: várias vezes entrei de cigarro aceso no chuveiro. Ah, sim: nem em salas de projeção. Razão pela qual tenho ido pouquíssimo ao cinema, uma das coisas de que mais gosto (de ir, não de não ir – pô, essa língua portuguesa ainda me leva à loucura!).

About cinema. Federico Fellini acaba de ser eleito pela crítica, em Bruxelas, o melhor cineasta europeu dos últimos trinta anos; e 8 ½, o melhor filme (viram só que charme o desse ponto e vírgula aí depois dos “trinta anos”?). Engraçado: Otto e Mezzo é o filme de que mais gosto em toda a história do cinema. Já vi umas 50, 30, 20 vezes, por aí, e nunca escrevi sobre ele. A primeira vez foi na Bahia, em 1964. Lembro que eu e meu amigo Carlos Athayde – um cineasta baiano que estava rodando um filme (Vida por Vida) sobre o corpo de bombeiros – vimos 8 ½ umas cinco vezes só naquela semana.

A gente saía do Cine Tupy, perto do Terreiro de Jesus, e descia pro botequim do Mundinho, na Ladeira do Pelourinho. Antes, uma parada estratégica na Cantina da Lua Cheia (onde, 15 anos mais tarde, fiz o lançamento baiano de meu livro Selva Selvaggia). Ali, tecíamos “altíssimas” considerações sobre a interpretação de Mastroianni & Anouk Aimée, os enquadramentos de Gianni di Venanzo e a inesquecível trilha sonora de Nino Rota. No Mundinho, decupávamos a fita (era “bem” dizer fita na época) plano por plano, entre marginais, garrafas de cerveja, prostitutas, cachaça, guaraná dos “irmãos” Fratelli Vita e muito café, que o Athayde tinha parado de beber (olhaí o português de novo: não café, mas o álcool mesmo).

Nosso cineasta baiano, aliás, era uma peça. Só andava de terno preto, preto dos pés à cabeça, só faltando o chapéu idem para se identificar totalmente com o Guido Anselmi, o diretor de cinema que Marcello Mastroianni (também eleito o melhor ator dos últimos 30 anos) faz em 8 ½. Como diria mais tarde Jean-Luc Godard (se não me engano, em Le Petit Soldat – estou citando de memória): “le cinéma c’est la verité vingt-quatre fois par seconde”).

Bom, pelo menos naquela época, era mesmo. Participei das tomadas de uma seqüência de Vida por Vida feita em pleno incêndio da Feira de Água de Meninos (celebrizado mais tarde através da bela música de Gilberto Gil). Guido Anselmi, aliás, Carlos Athayde, dirigia os bombeiros – que nem Fellini, todo de preto, megafone na mão — quando quase dá sua vida (e a do cameraman) pela vida de seu filme numa explosão de uma bodega repleta de cachaça – um pipocar ensurdecedor que repercutiu por toda a Cidade da Bahia.

Não cheguei a ver Vida por Vida pronto. Apenas alguns fragmentos do copião, projetado no Cine Guarany, ali na Praça Castro Alves, que na época ainda era “do povo, como o céu é do Condor”. Foi numa escaldante manhã de domingo, e a meu lado estavam os críticos Carlos Pinto e Alberto Silva e o Telles, do Jornal da Bahia, que falou o tempo inteiro do Tom Jones, do Tony Richardson, que havia assistido na véspera. Na fila à nossa frente, Sônia dos Humildes e Lídio Silva (ambos chegando do sertão, onde haviam filmado o Deus & o Diabo, com Glauber Rocha), juntos com o nosso Fellini baiano. Athayde estava devidamente de preto, tenso, uma garrafa de café ao lado e muito Continental sem filtro, que tornavam seus dedos inacreditavelmente amarelados.

A lembrança dessa projeção me remete a uma boutade do Orson Welles, qualquer coisa como “eu não gosto de ver filmes; o que gosto mesmo é de fazer filmes”. Muito lúdico, não? Muita coisa do menino que brincava com seu Rosebud, o trenozinho de Citizen Kane. Pois eu descubro que ainda gosto de ver filmes. Melhor, de rever. Ando doido pra rever All That Jazz, As Aventuras de Tom Jones, A Doce Vida, Os Eternos Desconhecidos, Acossado e o próprio Kane.

E mais uma vez revejo Fellini Otto e Mezzo, junto com minhas amigas Sônia Regina, Andréia, a italiana (não La Bogossian, que é a Andréa sem o “i”, a de “voz belíssima”, como diz o Luiz Linhares no Jornal do Porto), Rosane e Carlos Alberto Mattos, meu crítico de cinema predileto. Ganho uma chaveiro de Sônia Regina, reproduzindo uma claquete, do último Festival de Cannes – um barato. Andrea, que foi assistente de produção de Bertolucci em Tragédia de Um Homem Ridículo e que, como Fellini, nasceu em Rimini, me conta que quase todas as noites as músicas que Nino Rota fez pros filmes do maestro Federico são tocadas na piazza principal de sua cidade. Um must, não acham?

Mas revendo 8 ½ na sala de projeção da Cândido Mendes, em Ipanema, apesar de o operador não conseguir enquadrar o filme (cópia em 16 mm), apesar da dublagem em português, feita pra televisão, apesar do som péssimo, apesar do fortíssimo ar refrigerado, que faz com que Andrea me peça o casaco emprestado (eu vinha direto do trabalho), apesar de tudo isso, fica, entre tantas, a sequência onde Guido diz pro Cardeal que não é feliz. Sua Eminência rebate: “Mas quem disse que viemos ao mundo para ser felizes? Civitas Dei. Quem não pertence a Civita Dei, pertence a Civitas Diavoli”.

Só que o Cardeal diz isso dentro de uma sauna, i.e., ao mesmo tempo em que fala do espírito, cuida do corpo. Fellini corta a cena para uma tomada de uma rua da moda, onde Anouk Aimée faz a ronda das butiques ao som de Blue Moon, executada por uma orquestra feminina. Entre a lei de Deus e a do Diabo, o personagem Guido Anselmi (o próprio Fellini) fica com o circo da vida: “è una festa la vita”, Guido diz no final para uma patética Luísa, sua mulher (Anouk Aimée).

Bem, falar em festa: “No se preocupe. Tome mucho café. Fume un bueno cigarro”. E não se esqueçam de mascar seu bubbaloo.
Até domingo de carnaval.


Bubbaloo 3
Jornal Cataguases/ 07.02.88


Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG

https://ronaldowerneck.blogspot.com/



Direitos Reservados
É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação eletrônico ou impresso sem autorização do autor.