16/03/2021
16/10/2021
Ano 24
Número 1.244



 


ARQUIVO
RONALDO WERNECK

 

Ronaldo Werneck




CRISTO COM CHUVA E FOGO PAULISTA

Ronaldo Werneck - CooJornal

 

Noite de sábado que já vai alta num mês qualquer do Rio de 1969. Chuva fina e falta de cigarro na madrugada. Eu morava no Leme: desci e assumi o Gordini, o famigerado e imbatível bólido. Mal liguei o motor, lembrei-me que podia ir a pé, pois o Bar do Careca, a salvação da madrugada, ficava logo ali, no início da Gustavo Sampaio.

Mas chuviscava, e bateu preguiça. Nem bem passei a terceira e já chegava ao bar, ao lado das boates onde fervilhavam os jovens músicos da época – do Chico Buarque, que fazia show com a Odete Lara no Arpège, ao pessoal do Grupo Manifesto, Gutemberg Guarabira & Cia. Todos saíam das boates e terminavam a noite no Careca.

Nem bem adentrei o expediente, meu saudoso e prezado Afonsinho e sua bateria desceram de um táxi, vindos de um baile na Zona Norte. Um encontro desses, assim na madrugada, merecia um chope, né mesmo? Uns dez chopes depois, resolvi dar uma carona pro meu amigo e sua bateria. Nem bem entramos no carro e perguntei (de onde fui tirar isso?) se ele já tinha ido alguma vez ao Cristo Redentor.

Pois é, nós morávamos no Rio há uns quatro anos e nunca subimos o Corcovado – “o Redentor, que lindo” da canção do Tom Jobim. “Ora, ora, Afonsinho, então vamos lá”. E fomos, em meio à chuva, os chopes ainda chacoalhando em nós. No final do Cosme Velho, paramos numa padaria, o dia já querendo vir, e compramos uma garrafa de Fogo Paulista. Até hoje, só de ouvir esse nome já me sinto meio nauseado.

Na subida, Fogo Paulista rolando, o Gordini ia também rolando na pista molhada, em meio a curvas e mais curvas (pra quê tanta curva, meu Cristo?) – e nada do Redentor surgir. Lá pelas tantas, o Gordini deu uma rabeada, pura imperícia de motorista iniciante, e Afonsinho se assustou. Tudo bem, eu disse: “tamo subindo, mas já tô testando o freio pra descida”. Não sei se Afonsinho acreditou na tirada surrealista, mas lá fomos nós até el cumbre del Corcovado. Nem bem os faróis bateram no platô vi dois fuscas e um punhado de gente estranha parecendo dividir drogas, roubo, coisas da malandragem. Reduzi o bólido num só lance, dei meia volta e desci desabalado.

Pelo retrovisor, vi os fuscais faróis dos dois fuscas (o)fuscando ensandecidos atrás de nós. Não sei mais como fiz todas aquelas curvas, o coração aos saltos. Num lance de sorte, dobrei numa estrada vicinal. Os dois fuscas sumiram do retrovisor. Parecia perseguição de cinema. E não era? Como os fuscas, também o porre passou. Percebi que estávamos em Santa Teresa. Pegamos alguma outra descida, ainda meio perdidos, e nos vimos nas proximidades da Avenida Brasil. Levado pelos fuscas, o susto sumiu. Ufa!

Virei pro Afonsinho, mais branco que eu devia estar, e soltei de uma só vez: “vamos pra Vila da Penha fazer uma surpresa pra Marilda”. Acho que esse era o nome da sobrinha do pianista que tocava com ele (ou seria Marilene?), e que eu andava meio que namorando. Na Vila da Penha, deixei o Afonsinho num boteco e bati na casa da moça. Ela estava saindo pra missa das sete e me olhou assustada, pois eu estava mesmo de assustar.

Mal me cumprimentou e partiu a passos firmes e dominicais pra igreja. Eu voltei pro boteco, pedimos um pão com salame e uma cerveja pra rebater. Fim de noite, de susto, de “Redentor, que lindo”, de namoro infindo e finito. Pão com salame parecia ser o “gran finale” de todos nossos porres. Na volta pra casa, Avenida Brasil afora, lá do alto o Cristo parecia nos olhar entre nuvens esparsas. Meio molhado e ainda sem acreditar no que vira. Fogo Paulista na madrugada, a primeira vez no Cristo a gente não esquece. Ele também não.



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Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/



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