16/03/2021
16/06/2021
Ano 24
Número 1.226




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RONALDO WERNECK



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Ronaldo Werneck




Entubas um Bubalus?

 

Ronaldo Werneck - CooJornal


Tempos atrás, o poeta Ferreira Gullar publicava aqui no Pasquim um comentário sobre “O Pequeno Dicionário Histórico e Elucidativo de Assuntos Pouco Vulgares”, de autoria do Desembargador Alfredo de Castro Silveira. Segundo o poeta, o livro era o maior sucesso em Buenos Aires, devido ao completo nonsense de rigorosamente todos os verbetes.

Muito que bem. Saí de imediato pra livraria São José em busca de tão inusitada contribuição ao nosso vernáculo, que ainda por cima possuía um subtítulo dos mais supimpas: “Tudo nos Domínios da Literatura Abrangendo Todos os Ramos do Saber Humano”. Ora, pois-pois, nem bem comecei a declinar o extenso nome da preciosidade e já o balconista gritava lá pros fundos da livraria: “Solta um Dr. Silveira!”. Pra meu espanto, o Dr. Silveira estava/está solto e é um dos best-sellers da São José, já na 4ª edição.

Agora me chega às mãos outra raridade que nada fica a dever ao Dr. Silveira. “Exaltação ao Búfalo” é, no mínimo, um dos livros mais malucos e engraçados que já li, uma hilariante sucessão de chavões & frases supostamente “poéticas”, com toda a melosidade característica de um parnasiano de boa estirpe. Só que em lugar das veiazinhas azuis realçando o colo da mulher amada encontra-se o Bubalus (mas pode me chamar de Búfalo, viu?): “a tua presença nas pastagens verdes, pisoteando indiferente o macio tapete do relvado, forma contraste brusco e pouco agradável ao ambiente de harmonia colorida que caracteriza a natureza inteira”.

Na verdade, o búfalo brasileiro é uma parada. Vindos da África, os bubalus acabaram dando com os costados (e que costados!) na ilha de Marajó onde se alastraram & cresceram de forma espantosa (são quase duas vezes maiores que o bisão americano: mais uma vez os gringos se curvam). Os caçadores que se aventuram a encarar o seu bubalus em Marajó levam armas com calibre idêntico ao utilizado para elefantes. Mas, quase sempre, a vez é da caça e nossos heróis acabam ganhando o bubalus que a Luzia perdeu na horta.

Quer dizer, no Brasil seria outra a história de Bufalo Bill. Rima à parte, nosso amigo estaria frito. Imaginem vocês que agora alguns criadores do Paraná estão querendo cruzar o bubalus com algumas vaquinhas da região. Nossas amiguinhas, nem é pra menos, estão fazendo tudo pra esconder seus encantos. Mas o bubalus não perdoa: vai mandar sua brasa assim mesmo. E essa deverá ser realmente a primeira f(*) selvagem da história.

Bem, após essas brilhantes considerações, voltemos ao famigerado livro do Dr. Walter da Fonseca (palmas para o autor!). Sob o alto patrocínio da Associação Brasileira de Criadores de Búfalos, servimos ao indistinto público algumas fatias da preciosa publicação. Regalem-se, que há gosto pra tudo:

“De manhã e de tarde Deus fez então o dia sexto. O dia em que nasceste... E como os sagrados livros não assinalam o lugar primeiro onde os teus pés pisaram a terra virgem, o homem foi encontrar depois as marcas de tua existência na velha e misteriosa Índia, pérola soberba engastada na península sul da Ásia. Ásia das lendas e dos cânticos sagrados, o teu berço maior...

“De BRAMA – então o deus supremo do universo e alma do mundo, que se comprazia em dividir os homens em castas privilegiadas, decrescentes de categorias, até reduzí-los à condição de párias, ou seres imundos, tu herdaste a imponência, a valentia e a força...

“De BUDA – o iluminado, o criador do estado de nirvana, recebeste os eflúvios da serenidade, a condição de vivência tranqüila e a incondicional submissão ao homem, que te explora nos quatro cantos do mundo. Assim, BÚFALO, a tua origem está envolta no emaranhado de uma filosofia de princípios políticos-geográficos-religiosos, onde a ponta do fio desaparece no conteúdo de idéias e de crenças...

“É negra a tua pele: O teu mugido insinua um grito surdo de sofrimento que vai retumbar nas quebradas das montanhas, que adentra profundamente o verde emaranhado das florestas e que percorre ligeiro os vales dos rios, rumo ao infinito, em direção ao imponderável, buscando alguma coisa que o homem não sabe entender e que não procura decifrar... E tu caminhas lentamente, pesadamente, indiferente a tudo, seguindo ao encontro do nada!...

“Búfalo! Deus, é certo, deu-te o divino dom do raciocínio. Para e pensa! E pensando, volta os teus olhos tristes e lânguidos para a tua terra de origem... E no fim da vida aguardarás tranquilamente o dia em que a morte virá levar-te de volta até a origem das origens... Aí então – BÚFALO, a tua alma que deve ser branca, muito branca, exageradamente branca para contrastar com a negrura de tua pele, subirá pelos espaços sem fim, rumo ao imponderável...”.

A partir daí, parece que nosso brilhante autor entrou devidamente em pirólise, imaginando a apoteótica subida aos céus do nosso bubalus, recebido pelos deuses do Olimpo e, como não podia deixar de ser, pelos babalaôs dessa & e de outras plagas:

“Percorrerás primeiro os caminhos multicoloridos do arco-íris. E passarás pela Via-Láctea, cuja faixa esbranquiçada estará inteiramente marchetada de estrelas aurifulgentes – os vagalumes dos espaços celestiais... De um lado, legiões de anjos e querubins, dedilhando harpas, entoarão o cântico das Aleluias. De outro, centenas e centenas de Orixás, de Oguns, de Oxalás e de Oxus, farão ouvir os ritmos vibrantes, ardentes e cadenciados, da envolvente música africana...

“E ao longo dos espaços siderais a tua alma poderá ver figuras da mitologia em aplausos à sua passagem. Lá estarão Clio, Euterpe, Thalia, Terpsychore, Plimnia, Urânia e Calíope, deusas da história, música, comédia, dança, poesia lírica, astronomia e eloqüência. Vênus e Eros, os deuses do amor. E Themis, a imponente deusa da Justiça... Anjos, mitos e orixás! Um candomblé ecumênico no vazio do tempo... E muitos personagens bíblicos, saídos do Velho e do Novo Testamento, permanecerão postados em toda a extensão dos caminhos, sorrindo e admirando a silhueta tênue e vaporosa da tua alma, de contornos indefinidos.

“Até mesmo Judas – o traidor arrependido – estará formado ao lado deles. Estarrecido como todos eles! E tal como aconteceu no Vale do Aijalon quando Josué, sozinho, batalhou contra cinco reis, o Sol e a Lua pararão de novo, estupefatos à passagem de tua alma branca, exageradamente branca... Eolo, o deus do vento, estenderá a mão e aquietará a turbulência das tempestades e a violência dos furacões, deixando apenas em liberdade a brisa acariciante que refresca!

“E a tua alma volátil, etérea, indefinida como todas as almas, em absoluta e perfeita sublimação, prosseguirá indiferente, alheia a tudo, até alcançar o trono do paciente Buda, o deus de tua terra. Nesse exato momento, quando o silêncio for total e absoluto, um pássaro do Brasil – O Uirapuru, que o imortal Humberto de Campos chamou de Orpheu do Seringal Tranquilo, saudará a chegada de tua alma branca com seu cântico de ternura e de paz, místico de tradições folclóricas, de nostalgia intensa, anunciando a chegada do fim!...”.

Daí pra frente, só restava ao nosso autor coroar o bubalus com a aura de defensor dos fracos o oprimidos, um Búfalo Bill às avessas. E ele o faz de modo irrepreensível, com toda a elegância de seu linguajar surrealista:

“E em estado de nirvana, lá longe, bem longe, nos incomensuráveis espaços siderais, tu dirás ao homem civilizado que te explora: Obrigado, homem! Obrigado por esses mesmos búfalos que continuarão pela vida afora dando tudo de si, em troca de nada! Apenas e tão-somente motivados pelo instinto de participar ativamente no sentido do bem-estar da humanidade inteira! Conta comigo, homem civilizado ou inculto! Estarei sempre pronto a dar de mim em benefício de pobres e ricos, de párias e de potentados, de reis e de plebeus, de crentes e de ateus, de negros e de amarelos e de brancos...

“E quando a violência impiedosa da marreta do magarefe abalar por inteiro a estrutura óssea do meu crânio, quando a choupa decepar a minha cabeça ou o estilete perfurar a minha medula, você – homem, ouvirá de novo e pela última vez, a melancolia do meu mugido...”.

É isso aí: fora do búfalo não há salvação. Agora, venha cá, meu querido Dr. Fonseca, diga só pra gente: entubas um bubalus?

O Pasquim
Rio, 06 a 12/08 de 1976.





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Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/



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