16/03/2021
01/06/2021
Ano 24 - Número 1.224




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RONALDO WERNECK



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Ronaldo Werneck




Alcione, Arafat et moi

 

Ronaldo Werneck - CooJornal

Acabo de receber email de meu mais novo “amigo de infância”, o dramaturgo Alcione Araújo, que fez recentemente palestra das mais porretas no Centro Cultural Humberto Mauro, dentro do ciclo “Tim-Estado de Minas – Grandes Escritores”. Ele acaba de virar verbete do “Dicionário de Literatura da Língua Portuguesa”, como leio na Folha de São Paulo. Publicado há mais de 100 anos em Portugal, a nova edição do dicionário destaca que “Nem mesmo todo Oceano, primeiro e até agora único romance de Alcione, é um livro de profunda seriedade, que não usa a tão típica carnavalização brasileira, não necessitando se tornar um divertimento”.

Datada de 07.10.2003, a dedicatória que ele colocou em meu exemplar do romance diz assim: “Para o querido Ronaldo Werneck, amigo de infância que acabei de conhecer, meu abraço e minha admiração. Alcione Araújo”. Mas seu email não trata do romance nem da merecida honra de ser verbete do Dicionário português. Acontece que meu amigo andou lendo aquela crônica que publiquei aqui sobre minha aventura argelina – “Sangue & Areia” – aquela onde fiquei à espera de Arafat e com direito a “não dançar” com Geórgia, a bela magiar de muitos quilates, lembram-se? A fábula é condição “sine qua” de um romance. Bom romancista que é, Alcione viajou mais que este poeta. Confiram.

“Caríssimo Ronaldo: Uau! Achei! Então era você a razão da minha busca! Sua crônica iluminou o mundo e me fez entender o quiproquó do Oriente Médio. Explico. Eu passeava de braço dado com o fantasma do Camus pelas ruas perfumadas de "Argel, la blanche" quando fui abordado por um homem desesperado. Era um Saharaoui desorelhado, que gritava: Cadê o Embaixador Werneck, brasileiro duma figa! Onde se meteu o seu compatriota que me fez de besta? Perdemos a guerra porque ele nos enrolou com o dinheiro brasileiro, que nunca veio. Cadê o homem, que traiu meu povo! Eu mato, esfolo, esgano!

Eu não sabia o que dizer. Camus acompanhava a cena com um silêncio distante, sugando ávido o cigarro. O homem me sacudia: "Brasileiro é traidor! Tem que morrer! Aquele patife ignorou o grande Arafat! Fez pouco de um prêmio Nobel! Até então, eu não conhecia o Embaixador – o que só veio a acontecer mais tarde, quando, por acaso, conheci Cataguases, a capital cultural do hinterland mineiro, da qual me tornei natural sem ter lá nascido, e vivi o impacto da revelação: o Embaixador Werneck era, nada mais, nada menos, que o Ronaldo, meu irmão de criação!

A exasperação do desorelhado tornou-se ameaçadora. Foi preciso o Camus intervir com a tripla autoridade, de argelino, de escritor e de morto. O homem afastou-se praguejando contra mim, e jurando exterminar o Embaixador que, segundo ele, iludira seu povo que acabou perdendo a guerra do deserto. Se os saharaouis perderam a guerra, o Embaixador Werneck perdeu muito mais. Perdeu o turbante de Arafat e as delícias de Geórgia, a húngara de cem quilates, que o deixou para entregar-se à sanha de uma alcatéia de árabes.

Eis a terrível conclusão: sua crônica desvelou o mistério. Você, meu caro Embaixador Werneck, você, meu caro amigo Ronaldo, dois seres que ocupam um mesmo e safenado corpo, você é o responsável pela tragédia do Oriente Médio! Seu desprezo pelos árabes abalou a auto-estima daquela gente de tal maneira, que eles não tiveram mais força interior para enfrentar os israelenses. Arafat não é mais o que foi. Os palestinos se curvam.
Dito isto, consolo-o com uma revelação: você, apesar de toda a sua culpa histórica, de todo o seu jornalismo e das suas bandalhas do passado, é um excelente cronista. Um cronista menos rebuscado do que o poeta que, aliás, merece ocupar a vaga deixada pelo Haroldo na Academia Irmãos Campos. Um grande abraço do Alcione Araújo”.

Com Licença
Jornal Cataguases, 2003



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Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/



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