16/03/2021
16/04/2021
Ano 24 - Número 1.218




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RONALDO WERNECK



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Ronaldo Werneck




Sangue e Areia

 

Ronaldo Werneck - CooJornal


Passei cerca de 40 dias na Argélia em 1979. Representante da Cacex na Feira Internacional de Argel, às vezes respondia pelo stand do Brasil enquanto nosso presidente, o Secretário do Itamaraty Antonino Gonçalves, ia a Genebra ou a Paris para resolver alguma pendenga diplomática. Era um tempo de Leste-Oeste, esquerda-direita, quando a guerra Ocidente-Oriente ainda era fria. Não uma “fria” como agora. O mundo todo estava em Argel, os países exibindo em mega-stands suas últimas conquistas tecnológicas, industriais e até mesmo bélicas. Num daqueles dias em que presidia o stand – Antonino fora a Paris –, surgiu o representante da Nação Saharaoui. Eu já o conhecia de vista, pois seu stand ficara famoso na Feira por exibir filmes e equipamentos aprisionados ou recuperados durante a guerra que os saharaouis travavam naquele exato momento ao Sul do Marrocos, no Saara Espanhol.

Alguém disse pro saharaoui que eu era do Banco do Brasil e ele viera me consultar sobre possíveis financiamentos do BB às batalhas que seu povo travava no deserto. Tive que lançar mão de toda a (pouca) diplomacia aprendida naqueles dias ao lado do Antonino para “sair da enrascada”. Não podia simplesmente dizer não, pois isso poderia gerar um quiproquó internacional: afinal naquela hora eu era o presidente do stand do Brasil. Dizer “sim”, é claro, estava fora de cogitação. Então, deixei mineiramente o nosso saharaoui em banho-maria, enquanto aguardávamos “uma possível resposta de Brasília” – a quem eu afirmara estar consultando via fax. “Mas a resposta”, dizia a ele, “seria demorada porque o pedido teria que ser avaliado pela diretoria do Banco”.

Por conta disso, o saharaoui acabou “meu amigo” – e sempre vinha puxar conversa nas recepções que aconteciam quase todas as noites nos inúmeros stands da Feira. Não lembro mais seu nome. Só que perdera uma orelha na guerra – e isso era motivo de grande orgulho, exibido quase como “um troféu que faltava”. Uma noite, durante um coquetel no stand da Áustria, eu estava dançando com Georgia, uma húngara de cem quilates de quem ficara amigo, quando o saharaoui me abordou. “Monsieur, amanhã Arafat chegará a Argel e daremos uma recepção em nosso stand. Faço questão de sua presença”. Enquanto conversava com ele, começou uma dança folclórica argelina e vários árabes cercaram Georgia no compasso da dança. E literalmente “dancei”, pois me tomaram a nobre dama magiar.

Georgia me acenava meio aflita, mas eu e o saharaoui nada pudemos fazer por ela, a não ser bater palmas ao compasso da música. “Amanhã Arafat chegará”, repetia o saharaoui – e durante toda a noite só se falou nisso em toda a Feira e acredito que em toda “Alger la blanche”, como é conhecida a bela capital argelina. Yasser Arafat, o líder da Autoridade Palestina, vinha para uma conferência em Argel e era aguardado com visível esperança por toda a nação árabe. Não o conheci, apenas o vislumbrei de passagem durante o “coquetel saharaoui” da noite seguinte. Meu amigo chegou a me presentear com um daqueles turbantes em preto-e-branco que marcam até hoje sua figura, infelizmente extraviado na volta ao Brasil.

Nunca mais vi Georgia. Nunca mais, também, me esqueci daquela noite-véspera de Arafat em Argel. O poema a seguir tem quase vinte e cinco anos, mas é inédito. Foi feito durante aqueles dias em Argel e o publico agora numa homenagem ao líder árabe, Nobel da Paz em 1994, exatamente no momento em que seu poder na Autoridade Palestina começa a perder força face às intensas pressões do governo Bush. Parece, porque na verdade Arafat ressurge ainda hoje com todo o seu carisma mesmo nesses dias em que anda jurado de morte. O coronelismo nordestino assoma incólume e assume faceta internacional.

Arafat Chegará

lua
luar
despenca
sobre
o
mediterrâneo


amanhã
arafat
chegará

manchas de morte marcas
martelam o marrocos
na branca argel o mar
– arafat chegará

– de la bière, messieurs!
há no stand austríaco
rotundo coquetel
– arafat chegará

teia teia de estrela
autrichienne stella
artois pão scotch
– arafat chegará

magia magiar
requebra in the night
georgia húngara star
– arafat chegará

sim é aussi agreste
frenchenglish georgia
seu ar de buda-peste
– arafat chegará

bleu-blue danubio broken
my heart mon coeur deserto
lua lua luar
– arafat chegará

luzes emprenham o ar
os cílios de georgia
exalam cabochard
– arafat chegará

dentro de la nuit
o tuaregue azul
azul ri sem parar
– arafat chegará

sob argelinos olhos
dança georgia dança
sans son aãdjar
– arafat chegará

árabes de mãos dadas
cerco georgia cerco
ar parado no ar
– arafat chegará

rien de tout sabemos
do front saharaoui
oui lá mes amis
– arafat chegará

a orelha não há
l´ami saharaoui
é mesmo de assustar
– arafat chegará

no deserto a orelha
cai no front sem lugar
areia luar
– arafat chegará

não ninguém ninguém mais
ninguém bebe riccard
nem georgia mais há
– arafat chegará

preto-branco perturba
a turba o turbante
instante de arar
– arafat chegará

do chão de casablanca
brotam les roses–au-sable
pedra pó estelar
– arafat chegará

luz de não acabar
sim aujourd´hui
manhã cheia de mar
oui – CHEgARAFAT!


Com Licença
Jornal Cataguases, 2003




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Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/



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