01/03/2021
Ano 24 - Número 1.212




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RONALDO WERNECK



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Ronaldo Werneck




Floris bella espanto

 

Ronaldo Werneck - CooJornal


Recebo com espanto um email de alguma “Floris Bella”. Assunto: Dia Internacional da Mulher. Só então percebo que o próximo 08 de março é o dia D, de Delas. E só Delas. Não H, de Hora, ora-ora, como ativa o G desse desativado General de saúde e estratégias furadas. De início, pensei que o email fosse alguma referência a Florbela Espanca – poeta portuguesa de bela estampa e feminista à moda do Porto, sobre quem escrevi e dirigi uma peça-poética encenada há vários anos aqui em Cataguases, no Museu Chácara Dona Catarina. Mas, não: era apenas a chamada para um site com fotos de quatro belas e multicores mulheres: japonesa uma, loura a outra, negra aqueloutra e, alhures, uma morena.

Clique em mim: exigiam. Clicar quem não há-de? É então que me deparo com “Clean de Gérbera”, “Mimos de Kalanchoe” e “Ciclâmen mini”. Ora, ora, por quem sois! Apenas flores, venda virtual de flores para mulheres de todas as cores. Ciclâmen é o roxo, o arroxeado daquela flor, uma palavra de que gosto muito e sempre associo a uma música gravada por Nara Leão um pouco antes de morrer: “ciclâmen/meu bem/se amem”.

Houve um tempo em que, de tanto ouvir a Joyce (fã de carteirinha, tenho todos os discos e CDs, alguns autografados; vi a maioria de seus shows e, glória das glórias!, tenho até uma foto a seu lado no camarim do Mistura Fina, no Rio – a Leny Andrade também está, e me abraçando, é bem verdade: mas a gente vai levando, e deixa isso pra lá), pois é, de tanto ouvir minha ídala, achava que “esse negócio de ciclâmen” fosse também coisa dela, a danadinha! Mas não, é mesmo da Narinha. Mas ciclâmen, que me remete a Nara & Joyce, acaba me levando de volta ao Dia Internacional da Mulher. Afinal, se todos os caminhos levam a Roma – ou, se pelo avesso dela, Roma, voltamos ao Amor –, todas as palavras levam a (ou são para) elas, né mesmo?

“Essa palavra cave a palavra-chave/ essa palavra crave/ ave/ não a livra/ essa palavra cravo/ de espinho no meu corpo/ se transforma na palalma/ um Vrum: passou”. Quem nos diz assim com essa sensibilidade só dela (feminina?), de palavra e alma – de palalma, esse Vrum que passou – é minha saudosa amiga a poeta goiana Yêda Schmaltz, uma de nossas grandes vozes feminina, falecida lá se vão 20 anos. Como aqui, nesta Odisseia: “Bolinhos de chuva/ com café./ Adoce com cereja.// Uma raça de mulheres/ lavando trem de cozinha/ e não tomando o trem:/ fazendo tricô.// (Uma raça de mulheres/ que me dá pena.)//Frango com angu/ e quiabo./ Mingau de Maisena.// Uma raça de mulheres/ esperando Godot”.

Jantei numa churrascaria de Goiânia com Yêda, numa noite de muita chuva e poesia, perdida nos confins dos anos 1970. Generosa, ela dedicou-me um poema-carta e abriu toda a capa do Suplemento Literário que ela editava para meu livro Selva Selvaggia, que eu acabara de lançar em Brasília. Retribui dedicando-lhe um poema imenso que estava escrevendo sobre Brasília, publicado depois em meu livro Revisita Selvaggia, de 2005. Nos vimos mais uma vez no Rio, anos 1980, lançamento de um de seus livros. Depois, só retomamos contato no final do século (dos séculos), dezembro de 1999, quando ela me escrevia: “Meu poeta: voltou pra Minas, pra “cata gabiroba? E a saudade do mar, esse trem azul?” (citando o título de um livro que eu acabara de lançar). E se dizia cheia de compromissos e que “estou um pouco autoridade”, pois era Diretora do Instituto Goiano do Livro.
 
A profusão de compromissos com a vida e a literatura deve ter acelerado a morte de minha amiga poeta, “morta de coração”, que ironia! Sintam só a “força feminina”, o tranco deste poema de Yêda Schmaltz: “Os homens/ não me entenderam./ Me quiseram freira/ou prostituta: me estereotiparam./ Nunca me aceitaram/ no que sou de santa e puta.// Só fizeram mesmo/ foi trair, os homens/ que não entenderam/ o amor que abre o coração/ junto com as pernas.// Escrevo com meu corpo/ sobre este veneno de cobra/ que os homens/ me impuseram.// Pois os amei, os homens/ que me sujaram/ e me aborreceram/ com suas gravatas/ e suas bravatas./ Igual a meu pai, que me batia/ com o cinturão de soldados,/ e me fez civil/ para sempre”.

Junto a Clarice Lispector e Adélia Prado, Yêda Schmaltz é citada pela professora Cilayne Cunha, num texto disponibilizado pela internet, “Ecos do Feminismo na Literatura”, que também menciona “o caso” Narcisa Amália de Campos. Importante poeta do final do século XIX, Narcisa publicou seus poemas num momento em que se considerava que o desenvolvimento do cérebro feminino acarretava atrofia do útero. Isso mesmo: cérebro grande, útero pequeno. Em seu livro Nebulosas, a poeta Narcisa esbarra na medicina alienista (e devidamente enlouquecida) da época e é condenada por “atentado ao pudor da mãe doméstica” ao empregar expressões do romantismo extravagante, o que, aliás, também faziam poetas de sua geração, como Castro Alves.

Floris Bella, ciclâmen, palalma: palavras belas e “nebulosas”. E voltamos à cantora e compositora Joyce, que também fala como ninguém no “feminino” que não é gênero, mas estado de ser: “Me explica me ensina/ me diz o que é feminina/ Não é no cabelo/ Ou no tempo, no olhar/ É ser menina por todo lugar/ Então me ilumina/ Me diz como é que termina/ Termina na hora de recomeçar/ Dobra uma esquina no mesmo lugar/ Costura o fio da vida/ Só pra poder cortar/ Depois se larga no mundo/ Pra nunca mais voltar/ Oh mãe!/ Me explica/ Me ensina me diz/ O que é ser feminina/ Feminina menina/ No mesmo lugar/ Esse mistério estará sempre lá.” JoycYêda, Florbela, Narcisa: vozes que engrandecem o feminino.



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Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
https://ronaldowerneck.blogspot.com/



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