01/09/2019
Ano 22 - Número 1.139



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RONALDO WERNECK



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Ronaldo Werneck



Leila Livre? Leila Vive?
Viva La Diniz

Ronaldo Werneck - CooJornal



“Meteoro de curso breve, estrela de rápida cintilação, ela voou veloz nessa vida, estopim de amor, verbo solto e alegria. Um nome – o que diz? Leila. Leila Diniz. Plena de plumas & palavrões ela incendiou com sua coragem os incendiários anos 60. Foram muitas as leilas sem medo forjadas por essa Leila múltipla que explodiu em pleno voo. A vida que se partiu, estilhaços que se espalham e nos chegam até hoje, os dentes de coelha num cicio que se solta, a boca, o riso aberto. Leila. Leila Diniz.”

Assim começava um texto que fiz a pedido do “Bigode”, o meu amigo e cineasta Luiz Carlos Lacerda, para apresentar um evento que ele iria coordenar no Centro Cultural Banco do Brasil. “Leila Diniz 50 Anos” era uma homenagem à eterna musa de Ipanema, que estaria fazendo 50 anos naquele 25 de março de 1995. Se viva fosse. Mas viva ela era e ainda é. Leila morreu? Há controvérsias.

Por que me lembro disso agora? Acho que por ter falado da Leila inda outra dia com sua filha Janaína – que esteve aqui em Cataguases, trabalhando na produção do novo filme de seu pai, Ruy Guerra – e me deu uma saudade dos diabos! Porque em março agora aquele voo às avessas completou 47 anos. “Morre Leila Diniz na explosão de um jato sobre a Índia”: a manchete de primeira página do Jornal do Brasil de 14 de junho de 1972 nos pegou no contrapé, assim totalmente de surpresa – e deixou todos os brasileiros chocados. Não era só a “Musa de Ipanema”, mas agora era a do Brasil, musa que emudecia.

Chocado mesmo ficou o Bigode, que só soube da notícia um mês depois, em Londres, ao chegar de Katmandu. Mais terrível ainda para ele, o último brasileiro a ver Leila viva, no aeroporto de Bangcoc, antes dela embarcar para Roma e para a morte sobre a Índia. Bigode faria mais tarde, em 1987, um filme definitivo sobre a nossa musa, o longa-metragem Leila Diniz, com a Louise Cardoso fazendo o papel de Leila, igualzinha, impressionantemente igualzinha.

Leila livre, Leila vive. Pois é, foi só eu me encontrar com a Janaína aqui em Cataguases e Leila entrou de novo porta adentro, plena de vida, palavrões e rebeldia. Ainda em janeiro daquele 1972, meses antes de sua morte, estivemos juntos algumas vezes, eu ainda meio traumatizado, recém-saído dos porões do DOI-Codi. Ver Leila era uma forma de aliviar a tensão, de ir ao encontro da alegria, um desbunde geral. Eu estava de férias – merecidíssimas, após a prisão – e aparecia sempre nos ensaios do espetáculo que ela iria fazer, o rebolado Vem de ré que eu estou de primeira.

Sua filha havia nascido há pouco e, nos intervalos dos ensaios, eu andei levando algumas vezes a Leila para dar de mamar a Janaína, que ficava com a babá no apartamento emprestado pelo Tarso de Castro, na Lagoa, entrada do Túnel Rebouças. Era sempre uma festa. Um curto trajeto, do Leblon ao Túnel, o suficiente para que todos os motoristas buzinassem assim que a reconheciam, brincando com sua musa. Leila devolvia as brincadeiras sempre bem-humorada, sacana que nem ela.

Lembro que o porteiro do prédio do Tarso era flamenguista, e o nosso time já naquela época andava mal: Leila sempre caía de gozação em cima dele, como se fosse ela própria um outro porteiro. Carioca autêntica: simples, simpática, moleca safa & safada. Até hoje, sempre que entro no Rebouças pela Lagoa, tiro a cartola e... bate outra vez com esperança o meu coração. Mas Leila não mais aparece. Nunca mais o seu riso claro. Nunca mais o charme daquelas covinhas realçando seu rosto. Nunquinha.

Engraçado como são as coisas: foi exatamente naquela área do Rio, ali ao lado da Lagoa, na Igreja de Santa Margarida Maria, que a vi pela primeira vez, num casamento de algum amigo(a?) comum, anos antes daquele 1972. Leila acabara de filmar Todas as Mulheres do Mundo e estava com um minivestido rosa e simples, nada de estrela, apenas mais uma entre as muitas meninas daquele casamento. Qual o quê! Ela era uma estrela de luz intensa – e brilhava mesmo sem querer. Da noiva, não me lembro, nem mesmo seu nome. Dela, Leila, não mais me esqueci: está aqui ainda agora, o minivestido e o maxirriso, rosa e claro e para sempre. A partir daquela época, passei a denominar aquele lado do Túnel Rebouças de “Entrada Leila Diniz". E até hoje é assim que falo, com saudade da Leila para sempre Diniz, como a chamou um dia o Carlos. Qual Carlos? O Carlos, ora, o nosso poeta maior, o Carlos Drummond de Andrade. Mas vocês também, hein?!! Puxa, não conhecem ninguém, sô!

Por mais estranho que isso possa parecer, Leila me lembra igreja – Deus a tenha. Pois foram em igrejas os nossos dois primeiros encontros. Aquele do casamento na Lagoa e, dois anos depois o outro, em 1968, quando nós nos trombamos na Igreja de Congonhas do Campo. Eu voltava para o Rio, vindo de um Festival de Poesia em Divinópolis, e parei para visitar pela primeira vez os profetas do Aleijadinho.

Para minha surpresa, dou de cara com a Leila, sozinha, vendo os ex-votos no Largo da Igreja, como qualquer turista. Que diabos fazia Leila Diniz em frente ao meu nariz? Leila perdida em Minas, entre Daniel, Habacuc e demais profetas de menor fama e porte? – Madona de Cedro! – disse a musa sorrindo, os dentinhos de coelho à mostra, como sempre. Pois é, para meu espanto Leila estava filmando a Madona de Antônio Callado. E no papel da própria, of course.

A história da mulher brasileira deveria ser dividida em antes e depois de Leila Diniz. Melhor, antes e depois da explosiva entrevista que Leila deu ao Pasquim no início dos anos 70. Foi a partir dali que Leila mostrou-se absolutamente revolucionária, corajosa, desbravadora. Um divisor de águas, vulcão jorrando seu magma de vida e lições de vida. Com Leila, não havia nunca controvérsias. Ela era solar e saudavelmente sincera. Solar, aliás, era como eu a chamava no texto do CCBB, que agora me serve de despedida. À bênção, Leila.

Um mito o que diz? Leila. Leila Diniz
Nunca ninguém tão garota de Ipanema, mulher-oceano, solar: “Brigam Espanha e Holanda/ Pelos direitos do mar/ Brigam Espanha e Holanda/ Porque não sabem que o mar/ É de quem o sabe amar”. Nunca ninguém tão Leila Diniz: “Acho que eu sou um ponto fixo dentro de mim e um círculo ao redor. Esse ponto fixo é muito sério e as pessoas não manjam muito. Tem um negócio dentro de mim que é muito importante: a minha força, a minha verdade, a minha autopreservação”.

Leila de todos os verbos e verdades, Leila que diz: “Acho que cada um deve fazer o que lhe faz bem. O importante é amar as pessoas e sentir uma certa felicidade, apesar da zona ao redor. Não tá vendo que eu sou desafinada, de canela fina, e sou vedete? É só querer, ter coragem. Acho o palavrão gostoso e é uma coisa normal. O palavrão virou verdade em mim, e quando as coisas são verdade, as pessoas aceitam. Só me arrependo do que deixei de fazer por preconceito, problema e neurose. No fundo, sou uma mulher meiga: queria mesmo é fazer amor sem parar”.

Para Bigode, seu maior amigo, Leila era uma festa do interior: andava descalça todos os dias, nadava, bebia, parecia que nunca ia parar de comemorar a vida. Um mito, o que diz? Leila. Leila Diniz. Leila que tudo transou sem pecado. O riso claro, cristalino, o biquíni, o mar, a barriga ao sol. Janaína dentro e já liberta, como se pronta para a vida, no palco. Janaína já mamando, mamãe-vedete que amamenta sua cria em meio aos spots & paetês.

Leila é uma e são todas, todas as mulheres do mundo que nela se encontram e com ela aprenderam a lutar contra todos os preconceitos, como na frase que ela registrou no verso de uma foto, sua cara marota, moleca, amarelada pelo tempo: ‘Como eu gostaria de poder andar descalça sempre’. A Leila cinquentona, o que diz? Talvez o que escreveu para Janaína, em seu último cartão-postal enviado da Austrália, com direito a canguru com filhote na bolsa e tudo o mais: ‘Amor, volto logo, e acho que mais bonita e feliz’.

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Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG


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