Ronaldo Werneck
O POETA, ESSE REFUGIADO |
|
“De frio e fome/
cobertos apenas pela chuva/ eles morrem às dezenas,/ vindos do país do nada/
para o nada caminhando” – escreve Joaquim Branco na abertura de seu poema
“Refugiados”, que dá título a esse novo e belo livro do poeta cataguasense.
Não foi à toa que Platão expulsou os poetas da República, deixou-os fora do
Banquete. Quando conscientes, poetas são perigosos. Poetas apontam o caos do
cotidiano. Poetas são refugiados do sistema. Poetas são refugiados até mesmo
da literatura. E refugiados podem um dia insurgir, recusar, rebelar-se
contra as injustiças: “Caminham em paralelas/ para o infinito ou para a morte/
sobre os trilhos que os libertem/ da difícil batalha contra a sorte".
Exatamente como fazem os poetas da recusa, antenados com o mundo à sua volta.
Não só com poemas participantes, de protesto, como com aqueles outros, os
poemas visionários, antecipadores, que vão de encontro à arte tradicional.
Nada mais são que também refugiados esses poetas que fabricam seus poemas de
recusa. “Braço que acusa o acaso”, escreveu Augusto de Campos em sua
elegia para o poeta Mário Faustino, o ´aeromorto´. O mesmo Augusto que nos diz
em seu livro “Poesia da Recusa” (Ed. Perspectiva, 2006): “Em defesa de
Mallarmé, afirmou Valéry, certa vez, que o trabalho severo, em literatura, se
manifesta e se opera por meio de recusas. A melhor poesia que se praticou em
nosso tempo passou por esse crivo. Da recusa estética (Mallarmé) à recusa
ética (Tzvietáieva), se é que ambas não estão confundidas numa só, essa
poesia, baluarte contra o fácil”. E Augusto se estende em seu rol de
recusas: “A maioria das pessoas quer o consolo do entretenimento, arte fácil e
descartável para descansar a cabeça, ‘esquecer da vida’, e não para
problematizar-se. O que quer, afinal, Mallarmé, com tantos enigmas?
Conhecer-se. Romper os limites da linguagem para compreender e exprimir melhor
as angústias humanas diante do enigma supremo da vida e da morte. Revitalizar
a própria linguagem, dando-lhe um sentido mais puro”.
Exatamente o que quis
e quer Joaquim Branco em seus longos anos de ofício literário. Nós nos
conhecemos – melhor, nos aproximamos e começamos a trocar ideias e dar início
à fabricação de nossos projetos literários – lá nos longes de uma Cataguases
dos anos 1960. Uma amizade que se solidifica a cada minuto, que é também
(evoé, Cassiano Ricardo!) “um século XX”, já devidamente extrapolada para este
século XXI. E conhecer o homem, o amigo Joaquim Branco, é conhecer um ser
em toda a sua dignidade, um intelectual íntegro, é saber das “recusas”
representadas por seus trabalhos – da qualidade, da coerência de sua obra que
se perpetua em sua já longa trajetória. É saber de suas incursões pelos vários
movimentos que foram surgindo – concretismo, práxis, poema processo, poema
postal, poema visual – que demonstraram o poeta atento ao seu tempo. E
essa “curiosidade” – impressa na produção de poemas que remetem a esses
movimentos, como os que se encontram em seu novo livro, com suas artesanias &
artimanhas de expressiva visualidade – me faz lembrar as investidas do citado
Cassiano: exatamente como o Joaquim de hoje, um poeta já de “longo curso”, que
também participou ativamente dos movimentos da poesia concreta e da poesia
práxis, antes de criar os seus linossignos.
“Refugiados” revela novíssimos
poemas, grande parte escritos em 2017, e traz uma bela capa idealizada pela
filha do poeta, Natália Tinoco – que imprimiu ótimo tratamento na foto dos
refugiados, alguma coisa meio “flou”, impressionante, como se suas almas
pairassem sobre eles. O livro demonstra mais uma vez a vitalidade de Joaquim
Branco – a quase magia de perpassar pelos vários momentos atravessados pela
vanguarda nas últimas décadas sem perder a autenticidade, sem se deixar levar
por aqueles falsos criadores de meras cópias, de simples pastiches. Esses
poemas, como sempre tonificados por instigantes pedras-de-toque, têm sua
marca, sua assinatura, essa dicção própria e sempre inovadora que há muito
tempo me fascina. Às vezes seus versos brancos e livres podem nos lembrar
alguma coisa dos primórdios do modernismo, mas logo percebemos terem a
chancela inconfundível dos versos “branco Joaquim”, articulados por harmônicos
enjambements.
Em 1939, ao perder seu grande amigo, o poeta inglês W.H.
Auden escreveu Funeral Blues, uma das mais belas elegias de todos os tempos,
que ficou mais conhecida pelo filme “Quatro Casamentos e um Funeral”. Na ótima
tradução de Nelson Ascher, transcrevo os dois derradeiros quartetos, e logo
digo o porquê: “Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto/ viveu, meus
dias úteis, meu fim-de-semana,/ meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;/ quem
julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.// É hora de apagar estrelas —
são molestas —/ guardar a lua, desmontar o sol brilhante,/ de despejar o
mar, jogar fora as florestas,/ pois nada mais há de dar certo doravante”.
E agora sim, o porquê da citação de Funeral Blues: em 2014, Joaquim Branco
perde sua esposa e logo escreve uma também pungente elegia, “Folhas Caídas”,
que se encontra nesse livro “Refugiados”. Ele parte da canção popular “Se essa
rua fosse minha”, mas inverte o sentido satírico, parodístico, produzindo
versos de extrema delicadeza, de intensa comoção. Um poema pautado pela perda,
mas que não acena para “apagar estrelas” como o de Auden – antes sinaliza para
o súbito acender de uma nova estrela, pelo ascender da amada que partiu.
Termino com esse tocante poema de Joaquim Branco para Sonia Regina, comovido
como da primeira vez que o li:
FOLHAS CAÍDAS
Na via-crucis
desta rua mora um anjo que se chama Sonidão. Se eu pudesse eu mandava
ladrilhar seus passos para que ficassem na terra que os viu passar.
Na via-láctea do sonho, uma estrela no céu da tarde se fez além de
Órion e vai brilhar pela primeira vez no voo orbital do Sol.
Na
via-férrea deste outono – entre folhas caídas – uma entre mil outras
renasce, como se o céu se abrisse para não deixá-la cair
(injustamente) para sempre na impossibilidade do não-ser.
- Comentários sobre o texto podem ser enviados, diretamente, ao
autor: Ronaldo Werneck
Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG
Direitos Reservados É proibida
a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou
impresso, sem autorização do autor.
|