Ronaldo Werneck
Chico, Camões & meus botões |
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Tem dias que a gente se sente a cismar: o que será, que será que andam
combinando no breu das tocas? Dias em que não tem discussão, não, a minha
gente falando de lado e olhando pro chão. Mas você que inventou esse estado e
inventou de inventar a escuridão: eu pergunto a você onde vai se esconder da
enorme euforia. Como vai proibir quando o galo insistir em cantar. Amanhã há
de ser outro dia: inda pago pra ver o jardim florescer qual você não queria.
Outros e outros dias em que a gente vai contra a corrente até não poder
resistir. Outros em que a gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar.
Você vai se amargar vendo o dia raiar sem pedir licença.
Mas não é
dessa collage apressada de trechos de duas das canções emblemáticas de Chico
Buarque de Hollanda que quero falar aqui. Talvez de um tempo, página infeliz
de nossa história, os olhos (indevidamente) embotados de cimento e lágrima.
Difícil esquecer, mas vamos tentar não falar de “pedras-de-toque” como aquele
“Se entornaste a nossa sorte pelo chão/ Se na bagunça do teu coração/ Meu
sangue errou de veia e se perdeu/ Como, se na desordem do armário embutido/
Meu paletó enlaça o teu vestido/E o meu sapato inda pisa no teu”.
Ou
de pontos luminosos como os daquela construção de alexandrinos com cesura
perfeita, realçados pela profusão de proparoxítonos, de quem ergueu no patamar
quatro paredes mágicas. De quem tropeçou no céu como se fosse um bêbado e
flutuou no ar como se fosse um pássaro. Ou, ainda, da bela e injustiçada
Sabiá, uma elaborada canção de “in-exílio”: “Vou voltar/ Sei que ainda vou
voltar/Para o meu lugar/ Foi lá e é ainda lá/ Que eu hei de ouvir cantar/ Uma
sabiá”.
Chico vai voltar sempre, que aqui é o seu lugar. E sempre e
sempre nos surpreender com novas canções e romances. É também muito em função
desses que ele acaba de se tornar o mais novo laureado com o Prêmio Camões de
Literatura, o mais importante da língua portuguesa. Tanto mar. Por mares de
nunca de antes navegados, diz de lá o vate, são muitos os Chicos num só Chico
Buarque de Hollanda. Muitos Chicos em perigos e guerra esforçados, mais do que
prometia a força humana.
Instituído em 1988, o Prêmio Camões tem o
objetivo de reconhecer um autor de língua portuguesa que tenha "contribuído
para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural" do idioma através de
seu conjunto da obra. Chico foi logo saudado pela multidão de fãs, e até mesmo
pelo presidente: “pelo empenhamento político, pelo amor ao Rio de Janeiro e ao
Brasil, pelo trabalho sobre uma língua que, atravessando tanto mar, nos une”.
Pelo presidente português Marcelo Rebelo de Sousa, diga-se de passagem, porque
– aqui, ó! – o ex-Capitão Talkey fez cara de paisagem. E paisagem nebulosa,
claro! Quer dizer, cara de escuro como no breu das tocas onde inventou de
inventar a escuridão, como não podia deixar de ser. O Prêmio Camões ganho por
Chico foi um tapa de luva (de boxe, claro, um jab mais que perfeito) na
ignorância que grassa nos gramados do Planalto.
Budapeste: o
livro, o filme
Eu li a maioria dos romances de Chico Buarque,
livros significativos que lhe valeram o Prêmio Camões: Benjamin, Estorvo,
Leite Derramado. Mas o que chamou mais minha atenção, aquele ao qual me
debrucei quase magnetizado pela sutileza do enredo, por seus ardis na escrita
e pela trama das palavras urdidas com rara beleza, foi mesmo Budapeste. José
Miguel Wisnik diz melhor do que eu: “Chico Buarque teceu uma variação
inusitada (poderíamos dizer diabólica, se considerarmos que o húngaro é a
única língua do mundo que, segundo as más línguas,´o diabo respeita´), sobre o
escritor e seu duplo, sobre a fama e o anonimato, sobre identidade e
impostura, sobre quem-é-quem e ninguém”. E Wisnik finaliza: “É que há romances
que, no exato momento em que terminam, transformam-se em poesia. O romance
esconde a versão oculta de si mesmo, e se soletra todo, num flash extremo,
como uma língua-música, que se desse de uma vez, por inteiro”.
A
leitura de Budapeste me levou também à minha infância, ao jogo de botões (uma
das especialidades do próprio Chico), pois os nomes dos personagens do livro
homenageiam a lendária seleção da Hungria dos anos 1950. Exatamente como meus
botões entravam em campo, acompanhando as partidas como se ao vivo, com aquela
escalação diabólica comandada por Ferenc Puskás, meu melhor botão, além,
naturalmente, de astro maior do scratch magiar. Na ocasião, publiquei
uma crônica falando do livro Budapeste e de meus botões. Foi quando meu amigo
Walter Carvalho, que filmava o romance, me disse que gostara muito do texto e
que iria mostrar pro Chico.
Tempos depois, Waltinho me convidou para
uma exibição privê no Rio, pré-lançamento do filme, uma sessão matinal num
cinema de Botafogo. Na verdade, o filme Budapeste me deixou gratamente
surpreso pela condução da trama e pela qualidade das imagens, o que não é lá
muito novidade quando se trata de um filme com a grife Walter Carvalho,
possivelmente nosso melhor diretor de fotografia. Isso além de meu amigo, o
cineasta húngaro Miklós Palluch, aparecer subitamente numa ponta. Ao que
soube, Miklós auxiliou a produção na transposição para o húngaro de alguns
diálogos. O filme de Waltinho é “mortífero” – e vocês vão entender o que quero
dizer quando lerem minha citada crônica, publicada em meu livro “Há
Controvérsias 2”, que reproduzo a seguir, em homenagem ao Chico e aos dois
Waltinhos: o Carvalho, e o Jones Walter Melo, meu parceiro dos jogos de botões
da infância em Cataguases.
Chico, Puskas, Jones: sempre
mortíferos
Comecei a ler “Budapeste” no Rio, há cerca de dois
meses. Quase viro a noite, não fora o cansaço do dia-noite de viagem &
trabalho e a já nova madrugada & dia e seus compromissos: algumas reuniões
cariocas e textos & mais textos por fazer – lá e em acá/taguases. Abraçado ao
mais novo romance de Chico Buarque, dormi sonhando com o time da Hungria na
Copa de 1954, o famoso scratch húngaro entronizado por Armando
Nogueira, com seus Ferenc Puskás, Kocsis, Hidegkuti, Zoltan Czibor e outros
craques cujos nomes Chico embaralha no Rio-Budapeste de sua trama e faz
personagens de seu livro. Mais dias-noites em trânsito, mais textos em transe
madrugadas afora & compromissos noite-dia adentro – e só agora retomo
Budapeste, semanas após a primeira empreitada.
“Aí eu estou chegando
quase”, diz o escritor “fantasma” José Costa, ou Zsoze Kósta, tentando “falar”
húngaro para a namorada magiar, que sorri imaginando sua chegada “em pedaços”,
ou quase. O personagem de Chico Buarque voltava de um “encontro anual de
autores anônimos em Melbourne, encontro de profissionais que, por princípio,
princípios não têm” e, no Rio, passa a criar “autobiografias, mercadoria com
farta demanda reprimida”. No romance de Chico nomes e lugares remetem a
lugares e nomes reais ou fictícios, mas interligados a cada virar de página, e
acabamos às vezes até fazendo associações onde talvez não existam.
É o
caso de Teresa, que lembra Manuel Bandeira. Zsoze Kósta: “A escrita me saía
espontânea, num ritmo que não era o meu, e foi na batata da perna de Teresa
que escrevi as primeiras palavras na língua nativa”. Bandeira: “A primeira vez
que vi Teresa/ Achei que ela tinha pernas estúpidas/Achei também que a cara
parecia uma perna”. É intencional a perna de Teresa ou mera coincidência?
É como dizer com sofisticação eu te amo: “Me diz pra onde é que inda posso
ir/ Se nós, nas travessuras das noites eternas/ Já confundimos tanto as nossas
pernas/ Diz com que pernas eu devo seguir”. E, língua nativa ou não, pernas
pra lá e pra cá, Bandeira ou não, Chico acaba passando poesia: “Zelosa dos
meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava
o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro
nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas,
e foram dias e noites sem pausa”.
“Mortífero”. No jargão da juventude
húngara vista pela ficção de Chico, a palavra significa “o máximo’, que tanto
pode ser “o máximo de bom, como o máximo de mau”. Alguém lê o livro que Zsose
Kósta escrevera, livro dentro do livro, e diz “Mortífero”! Mortífero bom ou
mau? “Mortífero assim-assim”, é a resposta. Pois é, Budapeste é mortífero de
muito bom. “Agora eu lia o livro ao mesmo tempo em que o livro acontecia”, diz
Chico-Zsose Kósta lá pelas tantas. “Da língua que não estima”, diz ele sobre
seu personagem-escritor-anônimo, “ele mastigará as palavras bastantes ao seu
ofício e ao dia-a-dia, sempre as mesmas palavras, nem uma a mais. E mesmo
essas haverá de esquecer no fim da vida, para voltar ao vocabulário da
infância”. E Budapeste acontecia em mim, como se num repente voltasse à
infância.
Os craques húngaros adentram o gramado de Budapeste sem que
se diga quem são nem de onde surgiram esses nomes: o poeta Kocsis Ferenc
(Kocsis, era atacante do scratch; Ferenc, o primeiro nome de Puskás,
o mais famoso craque húngaro de todos os tempos, que acabou defendendo a
seleção espanhola e que vi atuar no Maracanã nos anos 60, numa noite de um
inesquecível Santos x Real Madrid. Vi mesmo ou foi sonho meu?); o escrivão
Puskás Sándor (o meia-armador Sándor era o primeiro nome de Kocsis), o
prosador Hidegkuti István (o centro-avante da equipe de 54); a praça Czibor
(Zoltan Csibor, extrema-esquerda), a avenida Bozsik (József Bozsik, o genial
meio-de-campo), “com suas bétulas em flor”, segundo Kósta. A cada nome, o nome
de Jones Walter Melo me surgia. A cada craque relembrado por Chico, Waltinho
aparecia como se sorrisse, o sorriso morto de meu velho amigo recém-falecido.
Os anos 50 sobrevinham em mim, marcados pelo mover dos botões mágicos
e de nomes idênticos manipulados por Jones Walter Melo na varanda da casa de
meus pais na Rua Dr. Sobral. Também em Cataguases o nosso scratch
húngaro era “mortífero”. Eu e Jones, o meu amigo Waltinho, formávamos o mais
invejável cartel de botões da cidade. Ele vinha do Bairro Granjaria para somar
seus craques aos meus, no mais poderoso button´s association da
história catuauá. Tão “mortíferos”, tão imbatíveis éramos que acabamos não
mais dando colher-de-chá aos outros meninos: só enfrentávamos a nós mesmos,
pois com os outros era pura covardia.
Acompanhávamos a Copa enquanto
ela acontecia, jogávamos os botões de nossa Copa, enquanto a varanda da rua
Dr. Sobral transformava-se na Suíça onde corriam os outros craques em tempo
real. Quem eram os craques verdadeiros, os de Melbourne ou os de Cataguases?
Há controvérsias ainda hoje, pelo menos entre esses marmanjos que às vezes
reencontro pelas ruas da memória, de volta ao vocabulário, sempre mortífero,
da infância. Olhaí, Waltinho, como é que você foi fazer uma coisa dessas,
abandonar o campo assim sem se despedir, sem sequer dar uma volta olímpica?
Mortífero, esse seu jogo. Bem, assim-assim: aí eu estou chegando quase.
23.05.2004
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Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
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