16/05/2019
Ano 22 - Número 1.125



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RONALDO WERNECK



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Ronaldo Werneck



O goleiro em vão: a bola não vem por onde devia

Ronaldo Werneck - CooJornal

“Nada me ensinou mais na vida do que o fato de ter sido goleiro” – disse um dia o grande romancista franco-argelino Albert Camus (1913-1960), que foi goleiro do time da Universidade de Argel no início dos anos 1930. Ele era alto, magro e de aspecto físico frágil. Não virou profissional, mas refletiu sobre a função de goleiro. “Depois de muitos anos em que vivi numerosas experiências – afirmou numa entrevista de 1957 – seguramente tudo o que sei sobre moral e responsabilidade eu devo ao futebol. Aprendi que a bola nunca vem para a gente por onde se espera que venha. Isso me ajudou muito na vida, principalmente nas grandes cidades, onde as pessoas não costumam ser aquilo que a gente pensa que são”.

Na Folha de S. Paulo do último domingo, 15 de julho, Tostão – que não foi goleiro, mas craque no campo e agora também na crônica – filosofou: “As transformações no futebol ocorrem aos poucos e passam despercebidas. De repente, enxergamos o óbvio, que muitas coisas estão diferentes, como nos últimos 15 anos, e que, no Brasil, só se deu importância após os 7 a 1. Assim ocorre também na história e na vida. Quando olhamos no espelho, levamos um susto ao constatarmos que envelhecemos, e que temos de correr atrás da vida, antes que ela acabe”.

Guevara & o papa

O goleiro não corre atrás da vida, mesmo porque sua função é esperar a vida feito a bola que corre contra ele – e às vezes até por ele passa. Isso quando não faz milagres, a exemplo do “São Castilho” do Fluminense da década de 1950. E, no Brasil, goleiro milagreiro logo vira santo. Talvez, seja porque um papa que teve seus dias de goleiro foi canonizado. Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, virou santo em 2014. Amigos dizem que, na infância, a posição preferida do papa era a de goleiro nas peladas em Wadowice, na Polônia. Contam que ele era robusto e corajoso: “Quando ele atuava como goleiro, era como um leão em frente à meta”.

Como se sabe, o argentino e “revolucionário cubano” Ernesto Che Guevara tinha problemas respiratórios – e havia restrições médicas à prática de esporte. Mas ele não abria mão de usar o futebol como oxigênio para as cruzadas. Atuar no gol era um santo remédio, segundo relata o amigo Alberto Granado: “Em 1963, em Santiago de Cuba, fizemos um jogo de futebol. El Che era ministro das Indústrias e uma figura muito popular. Mas, quando estava no gol, não se lembrava do cargo nem de nenhuma outra coisa. Enfrentávamos uma equipe da universidade que era treinada por Arias, um espanhol. Durante o jogo, Arias recebeu a bola e avançou, mas Guevara saiu do gol e lhe deu o bote. Ninguém podia imaginar que o ministro iria se jogar aos pés de alguém por causa de uma bola. Mas ele era assim”.

Outro político que também jogou no gol foi o brasileiro Café Filho, presidente da República de 1954 a 1955, depois do suicídio de Getúlio Vargas. Único chefe de estado na história do Brasil a ser jogador de um time de futebol, ele fundou o Alecrim Futebol Clube de Natal, do qual foi goleiro nos anos 1918 e 1919 – mesmo porque não tinha a mínima habilidade com os pés. Em sua autobiografia, referindo-se à histórica derrota do Alecrim por 22 x 0 para o América-RN, Café Filho ironizou: “O arqueiro que certa vez me substituiu deixou que os adversários fizessem 12 gols, enquanto eu deixara a bola passar nas traves apenas 10 vezes”.

Louco pra ser goleiro

Há outros também que ficaram apenas na vontade de ver realizado o sonho de ser goleiro ao menos uma vez na vida, como o poeta e romancista russo Vladimir Nabokov. “Eu era louco para ser goleiro. Na Rússia e nos países latinos, esta arte altaneira sempre esteve cercada de um halo de fascínio singular. O trabalho do goleiro é como o de um mártir. É a águia solitária, o homem misterioso. Os fotógrafos se ajoelham em reverência para imortalizá-lo em pleno salto espetacular. Distante, solitário, impassível, o grande goleiro é seguido nas ruas pela meninada em transe. Rivaliza com o toureiro e os aviadores como objeto de emocionada veneração. A camisa, o boné, as joelheiras, as luvas saltando dos bolsos da calça o distinguem do resto do time. É a águia solitária, o homem misterioso, o último defensor”.

E olha que em Cataguases – onde tudo é espanto –também afloram goleiros que, vamos dizer assim, a “projetam para o mundo”. Comentando minha crônica anterior, disse José Nêumanne Pinto, escritor e colunista do Estado de São Paulo: “Meu poeta e prosador, Cataguases é a Atenas (em função de seus poetas e escritores) de Minas e a Islândia (por causa do goleiro-cineasta) das Gerais”. E não é? Esta “arte altaneira” atraiu ainda agora ninguém menos que o cataguasense Guilherme Alvim Marinato, atual goleiro reserva da Seleção Russa que disputou esta Copa do Mundo. Ainda no time de escritores goleiros, também jogou Arthur Conan Doyle. Antes de publicar As aventuras de Sherlock Holmes, ele entrou para a história como primeiro goleiro do Portsmouth, da Inglaterra. Já outros escritores, como o uruguaio Eduardo Galeano e o nosso Nelson Rodrigues, se não foram goleiros, elaboraram as melhores definições sobre eles.

Diz Galeano: “Carrega nas costas o número 1. Primeiro a receber, primeiro a pagar. O goleiro sempre tem a culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito”. E Nelson:Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários. Um atacante, um médio e mesmo um zagueiro podem falhar. Podem falhar e falham vinte, trinta vezes, num único jogo. Só o arqueiro tem que ser infalível. Um lapso do arqueiro pode significar um frango, um gol, e, numa palavra, a derrota”.

Embora não tenha se destacado sob as traves, outro goleiro que ficou famoso mais tarde foi o espanhol Julio Iglesias... mas como cantor. Seu sonho era jogar futebol e ele viveu bons momentos defendendo a meta do Real Madrid, desde que ali ingressou aos 16 anos. Aos 19 já era titular, mas sua carreira no futebol terminou após um acidente de automóvel que o deixou de cama por mais de um ano. Ganhou na época um violão, começou a tocar, e mudou de carreira.

O culpado foi o Juvenal

“Um dia as pessoas vão ver que eu não tive culpa. No Brasil, a maior pena é de 30 anos, por homicídio. E já cumpri mais de 40 anos de punição por um crime que não cometi” – declarou Barbosa, o goleiro da Seleção Brasileira de 1950, ao ser proibido de entrar na concentração da Seleção Brasileira de 1994 para uma visita de cortesia.

No Rio de Janeiro dos 1970 eu almocei várias vezes ao lado do craque Ademir Menezes, o Queixada, no velho Oxalá da Cinelândia. Mas não tinha coragem de falar com meu ídolo no meio daquele mundo de carurus & vatapás. Uma tarde, já naqueles anos 80 pré-internet, fui levar meu texto na redação do Pasquim, que na época funcionava na Ladeira Saint Roman, em Copacabana. Na volta, resolvi tomar um chope na Avenida Atlântica, no Alcazar, aonde não ia há tempos. A varanda do restaurante estava vazia àquela hora. Só eu e outro freguês. Adivinhem quem.

Depois do terceiro chope e dos correspondentes steinhaggers, tomei coragem e abordei o Ademir. Que nem um uruguaio dos anos 50. Mas o Queixada não me driblou. Pelo contrário, foi simpaticíssimo e nós conversamos até o anoitecer. A chopada valeu até um depoimento inédito sobre o gol de Gighia em 50, devidamente datado e assinado por meu velho ídolo numa comanda do Alcazar, e que vai reproduzido a seguir.

Pô, Juvenal, então foi você o culpado? Todos achávamos que fora o Barbosa, o inexpugnável goalkeeper do meu Vasco (dos anos 50, antes de eu virar Flamengo, que sou via-casaca assumido), o Barbosa que não foi naquela bola meio marota, vindo assim meio chocha da linha de fundo, como quem não quer nada, aquele chutinho furreca do Gighia que botou o Brasil em prantos. Vamos dizer, então, como o Chico Buarque, que o culpado foi o Maracanã. Mesmo que o Ademir lance certas controvérsias sobre o pobre do Juvenal, coitado, “que esqueceu da cobertura". É menos doloroso. Pois é, estamos com o Maracanã entalado até hoje na garganta, por mais que cantemos as Toradas em Madrid.

O início e o fim: vilão & heroi

Ser goleiro é ser herói e vilão exatamente ao mesmo tempo – disse alguém um dia. Quem? Não importa. É querer evitar o inevitável sempre achando, lá no fundo, que dava pra defender o mais indefensável dos chutes. É jogar um jogo coletivo de forma quase individual e depois de uma grande defesa, ainda que não te agradeçam, saber que você é tão ou mais importante que o artilheiro. É saber dizer, mesmo quando todos achem o contrário, que não houve falha, pois só quem joga lá embaixo das traves sabe o quanto as defesas que parecem simples às vezes são bem mais difíceis que os pulos vistosos. É ser o início e o fim do time. É querer acertar quando o time inteiro já errou... Enfim, ser goleiro é ser a alma do time, mesmo num jogo onde o principal objetivo é passar por você.

Ao que parece, esse beabá do goal-keeper não foi assumido pelo argentino Muslera na Copa da Rússia, ao engolir aquele frangaço no gol de Griezmann. Aquele chute fracote do francês que vinha onde Muslera estava, no centro da meta, aquela bola que ele deixou escapar de sua mãos e ir pro fundo das redes. Exatamente como aconteceu comigo numa tarde de Cataguases, lá pelos anos 1950. Uma tarde inesquecível. Também pudera. Eu sob as traves do Operário Futebol Clube e no alto de um muro, como se debruçadas sobre o campo, minha mãe, minha tia e minha suposta namorada (que disso não sabia).

Um goleiro, qualquer goleiro, só existe enquanto existe o ataque adversário. Tem hora que a gente reza pra que chutem, chutem muito, chutem sempre. É a única chance de assinar o ponto o infeliz que apesar de todos os entraves busca resguardar o sacrossanto espaço entre as traves. Naquela tarde, nós já ganhávamos de um a zero, e nada da bola chegar à minha meta. Lá bem no alto das arquibancadas, ali bem em cima do gol onde me encontrava – sou surpreendido por três inesperadas figuras, tão raras quanto amadas e queridas e distantes como agora.

Os fundos da casa do pai de minha amada dava pro campo do Operário, exatamente como uma perpendicular que descesse sobre as traves onde me encontrava sob. Às vezes durante os treinos, e quase sempre em todos os jogos, minha amada lá se postava encarapitada na amurada. Diga-se, a bem da verdade, que “minha amada” é força de expressão, pois “ela não sabia que o era”, se me permitem as palavras truncadas. Nem precisa dizer que eu tinha um olho no campo e outro acima da arquibancada. Acho mesmo que devo debitar na conta desses olhares os únicos e pouquíssimos gols que sofri em minha exemplar carreira. Bem, na verdade, não foi muito uma carreira, porque jogava parado, embora em constante movimento, coisa de goleiro, não sei se me entendem.

Pede demissão!

Quem não me entendia era eu mesmo naquele jogo, esse que vemos agora, sob aquelas traves aonde não chegava sequer uma mísera bola. Nada chegava à minha cidadela, fora os olhares ansiosos lá de cima. De quem? Sim, dela é claro, mas também, e pela primeira vez vendo a atuação deste herói, de minha tia Carmem, a Cacai, que me acolchoava os calções, costurava as joelheiras e as meias, e dava a maior força para minhas arremetidas ao evitar os gols desta vida. Estava lá Cacai, que guardava e acho que guarda ainda agora os voos impossíveis deste inacreditável goleiro que com amor buscava agarrar seus sonhos. Os meus e os dela. A terceira criatura era de todas a mais improvável, a mais impossível de ali estar.

Dona Maria José Werneck Silva, Dona Zeca, la mamma. Lá estava quem eu menos esperava, a mamãe que odiava só de pensar no seu rebento transformado num “desses vagabundos que viviam de bicho e bola”. Bola, era a bola mesmo, futebol. Bicho, aquele mimo, aquele dinheirinho passado pelos dirigentes após as vitórias. Séria, atenta entre Cacai e minha amada, lá estava ela, a Dona Zeca: quem diria, quem eu mais temia. E o atleta aqui suava frio e sem graça, mesmo porque a bola, essa danada, não vinha nem por nada. Nosso adversário era formado por inacreditáveis pernas de pau e sequer mandavam um mísero chute pro meu gol.

Eu parado, eu nervoso, eu inútil. Eu, Tarzan; você, Jane, minha amada. Onde anda meu cipó, como fugir dessa grama, como escapar dessas traves, como sair dessa selva selvaggia? Eis que de repente, e não mais, numa falta besta qualquer lá no campo deles, um jogador adversário chuta aquela bola que vem lá de tão longe, de mim distante. O sujeito havia chutado a grama e a bola lá vem vindo dos confins onde me desavim, murcha e chocha que nem ela – enquanto toda a defesa de meu time vira as costas, esperando que eu pegue a dita cuja e distribua pro ataque, num desses lances corriqueiros de qualquer partida.

Era a minha vez, a vez de mostrar minha competência para as três “figuras murais”. Dei uma última olhada assim de viés lá pra cima – para aquelas que eu acreditava minhas fãs forever, e me preparei para “a” defesa. Na verdade, não precisava de defesa nenhuma, a bolinha vinha boba e mansa, como se saísse dos pés de um moleque, rumo ao meio do gol, onde eu estava. Quer dizer, era só ali ficar, encaixar cômoda e tranquilamente no peito e distribuir a jogada. Não seria nem contra-ataque, já que não havia ataque, pois aquele chutinho suburbano não representava nenhum perigo. Ledo engano.

Não imaginavam os companheiros, não imaginavam os adversários, não imaginava a nobre torcida nem o trio de fãs o que arquitetava este nobre atleta. Aos poucos, meio de banda, fui dando uns passos pra fora do centro e do gol. Assim, quando a danada chegasse, e chegou, era só fingir um mergulho que era um mergulho mesmo, pois agora eu estava fora do centro, de mim, do campo, do gol e do mundo. Foi um voo daqueles antológicos, uma ponte belíssima à la Pompeia, daquelas pontes de “quero palmas”, onde agarrei a menina-bola como se agarra e se domina o mundo quando jovem. Só que o impulso de meu salto foi demasiado e incontrolável. Fomos parar, eu e minha redonda amada, no fundo do gol. Santa palhaçada! É quando, ainda no chão, preso à rede e ao vexame, ouço o grito inesquecível de mamãe: – PEDE DEMISSÃO, MEU FILHO!

Não pedi, mas deveria. Tempos depois, veio a glória (não, o nome da suposta namorada era outro), ou quase. Na Cataguases da época, como “no resto do mundo”, fazíamos o chamado footing na Praça Rui Barbosa: os meninos andando pra cá, as meninas pra lá. Foi quando ouvi, numa noite de domingo, meu nome Foi quando ouvi, numa noite de domingo, meu nome citado pelo locutor e comentarista Celso Motta num dos alto falantes que transmitia, do alto de uma árvore, a programação da Rádio Cataguases. Eu fora eleito o melhor jogador em campo numa partida realizada naquela tarde entre o Juvenil do Operário e o do Flamenguinho, nosso grande rival. Imaginei então que minha amada – que rodava pela praça no sentido inverso ao meu – tivesse escutado a transmissão. Mas em seu footing sem fim, ela já estava do outro lado da praça. E, como sempre, não estava nem aí pra mim e pras minhas mirabolantes defesas.


 

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Ronaldo Werneck,
poeta e escritor
MG


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