01/09/2020
Ano 23 - Número 1.187



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MILTON XIMENES

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Milton Ximenes Lima


“Fundo de gaveta"
Confissões de um líder burocrata

Milton Ximenes Lima - Colunista, CooJornal

Tinha que ter paciência sim! E pulso também! Qualidades importantes para quem lida, principalmente, com os imperfeitos seres humanos! Ainda mais ele que, além disso, comandava uma equipe, era Chefe de Seção. Como sempre, na experiência da carreira, percebia os fatos que lhe escondiam. Alguns poucos se salvavam, em nome de alguns muitos aspectos, e da moral da repartição. O jeito era selecionar. Quem não se adaptasse, devolvia logo ao Pessoal (futuro Serviço de Recursos Humanos.) Boa vida com ele não se entrosava muito não: daí, três casos o apoquentavam, um felizmente, já resolvido:

– ”Seu“ Cristóvão, atrasei-me hoje, reconheço. Mas o Senhor me compreenda, a minha cadela de estimação estava tão dodói e tive que a levar para um passeio pelas areias de Copacabana. Recomendação do veterinário. Demorei um pouco, ela não podia correr muito...

Falta de respeito! Na mesma hora nasceu o memorando de remoção de D. Catarina. Os outros dois casos dependiam de um único e santo objeto: o telefone. (Naquele tempo, os celulares ainda não estavam implantados.) Telefone de repartição era mais procurado do que político de situação. D. Eufrasina vivia de receber interurbanos diários do seu amado que, obrigado pelo ofício, algumas vezes partia para a Paulicéia. Quando retornava, ciumento ao extremo, ficava até em conversas pelo corredor, e não deixava, nem homem, nem mulher, cumprimentar sua noiva. Uma ocasião – estava ausente do local de trabalho – o estranho homem ali aparecera munido de um facão e ameaçara, lá de fora, a já nervosa Eufrasina:

– Nada de conversas ou intimidades com colegas na repartição, hem! Meto-lhe a faca!

Corre-corre inesperado, felizmente sem consequências graves. E, desde então, ele ficara alerta, à espera do reaparecimento do homem, ou para qualquer outra emergência.

A segunda dor de cabeça era a Claudinha, a viúva. Qual distinta senhora da “alta” sociedade, muito bem vestida, e em completo relax, ela se apoderava dolentemente do telefone para saber das últimas e marcar seus encontros, alheia às necessidades administrativas da Seção. Suas pernas ficavam em distraídas posições tais que diante da curiosidade dos olhos dos colegas, ele era obrigado a falar com ela, a sós. Outras vezes, um automóvel parava na rua defronte, um homem subia e a chamava. Descia com ele, retornava na hora de “fechar” o ponto, aparência um tanto maltratada. Os dias passando e sua coleção de admiradores a desfilar. Anteontem, o máximo do seu comportamento, ela resolveu fazer as unhas ali mesmo, nas suas bochechas, na maior calma. Indignou-se, repreendeu-a e assinou m memorando ”sugerindo” sua transferência. Ela não se revoltou, não falou alto, mas justificou o impensado gesto, confidenciando:

– Fiz concurso para outro Instituto: Oficial de Administração. Passei... (Cá entre nós: - como, meu Deus?) A nomeação vem por aí. Não me prejudique, por favor... Espere um pouquinho!

Da sua mesa, Cristóvão a vigiava tenazmente. Salvo os telefonemas, que continuavam, ele mudara, burocraticamente, seu procedimento nos dias posteriores àquela repreensão, ainda permanecia nele a dúvida sobre a existência ou não daquele concurso!

Levantou-se e alertou, uma tarde, ao datilógrafo mais perto:

– Vou à Divisão Financeira resolver um problema contábil importante. Haverá uma reunião com outras chefias. Deixarei meu paletó no encosto da minha cadeira para sinalização da minha ausência.

Vestiu um elegante casaco que costumava guardar caprichosamente numa das suas gavetas, e saiu pelo elevador dos fundos. Quase se esquecera... pô! Era o último dia daquele filme pornográfico francês anunciado para aquele cineminha escondidinho entre altos edifícios daqueles quarteirões próximos do centro da cidade!

“Também sou filho de Deus, gente!”, justificava-se, enquanto triturava prazerosamente as pipocas compradas no camelô.
 

Comentários podem ser enviados diretamente ao autor no email miltonxili@hotmail.com





Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

Email: miltonxili@hotmail.com
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