Três
crianças, menos de dez anos de idade, sob a vigilância da mãe e da babá,
voltam das férias no Rio no mesmíssimo trem de ferro da Leopoldina Railway,
de tradicionais atrasos, caminhos cheios de curvas no Espírito Santo, ciscos
nos olhos que não atrapalhavam as apreciadas visões dos campos e montanhas,
seccionadas pelos postes do telégrafo cujos fios iam e voltavam contra a
amplitude dos campos e do céu.
Em Cachoeiro, busca de nova morada.
Lado sul, perto do campo do Estrela do Norte, o mais popular clube da
cidade, cheiro de Botafogo na camisa. A casa não era das melhores, goteiras
cascateavam sonoramente sobre vasilhas dispostas no chão, abrigávamo-nos sob
móveis, mas o que podia pretender a mãe, viúva, e, ainda por cima,
professora primária?
Mas aquela janela lateral me trouxe a paisagem
nova. Construída sobre uma encosta, a casa nos dava a vista de todo o campo
de futebol do Estrela do Norte, tornando inúteis os altos cercados de
madeira. Aos domingos, enchia-se a arquibancada, situada no lado oposto, e,
no gramado, aqueles homens de uniformes coloridos a perseguirem uma bola. Às
vezes, bolas lançadas mais altas às laterais colhiam as paredes das casas
das redondezas. Numa dessas, em dia de chuva, a nossa foi carimbada com uma
redonda e eterna marca de lama.

Campo do Estrela do Norte, em
Cachoeiro (aspecto mais atual) - foto de MXL
Outra mudança, agora para o
lado norte do rio, imediações da velha Matriz e do campo de tênis dos
Semprini. Vizinho meu era o Catiquinha, jogador do Estrela, e, na casa,
geminada, o rádio do outro vizinho de parede me trazia as primeiras emoções
auditivas do futebol. Comecei a me simpatizar com o Vasco, time incensado à
época, base da sensacional seleção de l950.
No imenso terreno
defronte à Igreja-Matriz, no meio da garotada das redondezas, os primeiros
chutes, os primeiros joelhos, canelas e pés agredidos pelos tombos no
“campo” pedregoso, as primeiras discussões em defesa dos seus times
preferidos.
Da alegria das vitórias de cada jogo daquela Copa,
estampada naquelas vozes adultas que se erguiam das casas e dos quintais
próximos, o garoto, onze anos, que fui, apenas observava, incapaz ainda de
absorver aquelas vibrações eufóricas. Confuso ficou, depois, com aquelas
lágrimas do jogo final, e triste ficou mesmo porque todos ficaram tristes.
Dia seguinte, indiferente, voltou simplesmente aos movimentos de outras
brincadeiras e estudos da idade.
Anos depois, já no Rio, as mãos do
meu tio flamenguista me conduziram ao Maracanã, repleto, torcidas em gestos
barulhentos de emoção, eu já integrado à vascaina, vendo e admirando,
diversas vezes, o talento dos mesmíssimos craques daquela Copa.

Maracanã - foto MXL
Não sei por que, no intervalo de um desses jogos,
contemplando aquela multidão apaixonada das arquibancadas e das gerais, e
desenterrando os momentos de 1950, aquelas vozes silenciadas dos meus
vizinhos, deixei vir a mim devagarinho, devagarinho, a compreensão de um
tardio complexo de culpa por, mesmo criança, lá nos quintais da minha terra,
não saber captar, apreender e entender a brasileira tristeza deles.
Realmente, aquelas lágrimas estavam, agora, para mim, plenamente
justificadas: com tantos bons jogadores ali em campo, jamais poderíamos
deixar escapar aquele Campeonato Mundial. Mas, bem, eu era uma criança, e
minhas formas de tristeza eram bem outras...
(RT, 06 de julho/2012) CooJornal nº 794
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