02/12/2011
Ano 15 - Número 764


 

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ARQUIVO
MILTON XIMENES

 

Milton Ximenes Lima



O FALECIDO


(Ficção-realidade)
 

Milton Ximenes, colunista - CooJornal

Depois de mais um daqueles belos crepúsculos com que a orla marítima do Leblon costuma apascentar nossas emoções, a noite se debruçou sobre os morros e os prédios do bairro. Na galeria de um velho edifício, pouco a pouco, os comerciantes anunciavam o término dos negócios, arriando as portas das lojas. Em contrário, alguns bares permaneceram abertos, já que o movimento mais forte de fregueses principiaria naquele momento.

Arrastando seus variados pertences, o mendigo chegou. Com folhas de jornal que arrebanhara do lixo de uma banca de jornais, ventilou e varreu um canto que lhe pareceu mais isolado e protegido, lá no fundo. De um saco de estopa, retirou a lata de gordura de coco, predileta marmita, descansou-a sobre o chão e a envolveu com o sujo e amarfanhado saco. Estava pronto o travesseiro. Assim, foi adormecendo, no caminho dos seus merecidos sonhos.

A posição, por muito tempo, daquele homem, espichada, dura e aparentemente imóvel, porém, passou a impressionar aos passantes. Tanto que mãos, presumivelmente caridosas, se encarregaram de cobrir, com o resto dos jornais, toda a extensão do seu corpo. Depois, quatro cotocos de velas vieram demarcar e iluminar as quatro extremidades geométricas – imaginárias do corpo, um retângulo meio imperfeito. Enquanto isto, gente chegando, chegando, curiosa:

- Que é? Quem é? Quando foi? Como foi? Coração? Cachaça?

Ninguém sabia respostas para perguntas tantas. Conselhos, apenas: não mexam nele até a chegada das autoridades. Perigo no toque, nas impressões digitais. Doenças infecciosas!

Arrostaram, sem outro remédio, um guarda de trânsito, nervoso e indeciso, por haver abandonado sua estratégica esquina. (“-Sim, ficaria por ali perto, mas não por muito tempo, que fossem logo buscar um policial mesmo” – condicionou.)

De repente, no meio de todas essas opiniões e providências, muitos presenciaram o que a ciência até hoje pouco testemunhou. Em princípio, admirados, depois espantados. E debandada quase geral! Impossível! O falecido, importunado no seu repouso pelo movimento das pessoas e suas vozes agitadas, abriu um olho, arregalou o outro, situou-se, espalhou violentamente os jornais que o cobriam, pôs-se de pé, chutou as velas, quis brigar, em alto e arrastado som:

- Que merda é essa, onde tá o viado que fez isso? Apareça, se for homem!

Depois, assumindo altivo e digno porte, olhar por cima de todos, catou suas bugigangas, ameaçou ainda jogá-las sobre os mais próximos, e, vomitando palavrões, abandonou o local em direção à praia, entre freadas dos carros na avenida litorânea.

Próximo, um automóvel tipo esportivo há muito estava parado à beira da calçada defronte. Dentro dele, quatro rapazes bem vestidos, cigarros entre os dedos, vigiavam e saboreavam risonhamente sua macabra brincadeira, a primeira daquela noite de sexta-feira. Que se prometia longa...


(02 de dezembro/2011)
CooJornal no 764


Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

miltonxili@gmail.com
miltonxili@yahoo.com.br

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