01/07/2011
Ano 14 - Número 742


 

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"Amigo da Cultura"






ARQUIVO
MILTON XIMENES

 

Milton Ximenes Lima



Nas madrugadas, pelas várias estradas...



 

Milton Ximenes, colunista - CooJornal


Foto MXL


À noite sonhamos

Nem sempre. Já ganharam a experiência de viajar nos ônibus-leitos? Ser premiado com um vizinho tagarela?Teve um que me desabou toda sua sabedoria sobre mecânica de automóvel, logo eu que sonhava, poeticamente, com minha chegada em Cachoeiro de Itapemirim, no dia seguinte. E com um caboclo-roncador? E aqueles que têm a cabeça-pêndulo e que, em sono profundo, teimam em gentilmente se aconchegar no nosso respeitável ombro? Se for homem, não tem nem diálogo, o jeito é, com uma forte “ombrada”, jogar sua cabeça para o outro lado.

Direitos e obrigações
 
É desejar muito que tenham todos melhor nível de educação, mas desconfiômetro sempre é bem recebido. Como em certa viagem longa e cansativa, de Camboriú para o Rio, depois de uma cerimônia de ordenação sacerdotal de um sobrinho, em que o passageiro teimou em deixar sua luz individual acesa para mergulhar em grosso livro que me pareceu uma bíblia ou um livro de formato e formação teológica. A claridade era forte, alcançava nosso banco, à direita. Minha mulher começou a reclamar, dei-lhe razão, a gente tinha que se virar para o lado da janela, puxando o cobertor sobre a cabeça. Posição incômoda, não era para isto que tínhamos comprado aquele conforto. Entre cochilos, começamos a reclamar em voz mais alta. Nada. Aproveitei a parada do jantar em Curitiba, conversei com o motorista para intervir. Ele não disse nem sim nem não, passou a impressão de que não queria ser antipático a qualquer passageiro. No reinício da viagem, a luz foi apagada. Graças! Mas às 5,30 horas da manhã ela reapareceu... o homem debruçou-se novamente na leitura. Na estação final, identifico-o melhor, um padre com vestimenta “clergy-man”. Certamente pensando mais no paraíso do que na terra, mais nos anjos do que seus fiéis daqui deste mundo...
 
Desculpas
 
Relembro meu falecido sogro que costumava viajar profissionalmente de ônibus noturno do Rio para Governador Valadares, onde substituía, nas férias, o gerente de uma firma do comércio de pedras. Quando ao seu lado se aboletava um companheiro conversador, cortava:
-Mim não entender português...
Puxava a aba do boné sobre os olhos e virava a cabeça para o outro lado, sono garantido...
 
Uma das últimas
 
Em viagem do Rio para Cachoeiro, junho de 2005. No banco “executivo” à minha frente, o “garotão”, cheio de saúde e inquieto, após sentar-se, tomou logo a primeira providência: escancarou as cortinas da janela lado a lado. Quase ao mesmo tempo, do outro lado do corredor, no “leito”, a mocinha bonitinha o imitou. Deviam ser boêmios ou claustrófobos. As luzes externas invadiam e relampeavam a parte do meio do ônibus, incomodavam o olhar. E, por incrível que pareça, ele acavalou sobre o nariz um óculos de lentes... escuras(?!) com hastes brancas, da moda...Depois se mudou para um leito vago, lá também  abriu as  cortinas. Criei e ansiei por uma oportunidade, deixei-o cochilar, fechei as cortinas do meu lado. Também dei uma puxada nas da mocinha, agora mergulhada em profundo sono. Na alta madrugada ele retornou ao banco original, mas não mexeu em mais nada. Graças! Ainda, no retorno ao Rio, enfrentei um grupo quase uniformizado de homens de crachá instalado nos fundos do ônibus, próximo ao banheiro, à geladeira e o café. Cheiravam a Simpósio, porque matraquearam suas temáticas até alta hora.Tanta gente, não tive como enfrentá-los a não ser ...desligando... meus aparelhos auditivos! Indesejada, mas “santa” surdez!
 
Sem querer
 
Também já perturbei. Possivelmente entre as décadas de 50 e 60, a Ponte Rio-Niterói ainda não construída, os ônibus, ou atravessavam a baía da Guanabara através de balsas ou a contornavam, via Magé. Tempos em que, também, o trecho entre a divisa do Espírito Santo e Campos era de terra batida, lama pura nas chuvaradas, veículos puxados por tratores. Bem, meu vizinho lembrava um coronel de interior, chapéu elegante e impecável terno branco. De repente, o vi limpar-se de um pozinho preto. Não havia ônibus refrigerado, as janelas ficavam abertas para arejar. Esclareci-lhe que aquela sujeirinha era da poluição da Avenida Brasil, mais adiante aquilo iria acabar. Mas entramos na rodovia de Magé e aquele pozinho a cair... De repente, saquei, e sem que ele notasse, fui mexer na minha bagagem de mão, em cima das nossas cabeças. Mexi, remexi, apertei, amarrei, voltei ao banco e nada mais aconteceu. Ainda bem que me lembrei daqueles dois pacotes de café, um quilo cada um, que minha tia-avó, funcionária do Instituto Brasileiro do Café (IBC), mandara de presente para minha mãe!
 
A solução
 
Para o problema da convivência nesses ônibus noturnos especiais, seria oportuno o motorista acrescentar às costumeiras palavras de boas vindas que profere antes de começar seu trabalho, outras que “lembrassem” aos viajantes a razão de ser daquele noturno ônibus, repleto de macios leitos e confortáveis cadeiras tipo executivo, travesseiros e cobertores higienizados, pacotinhos de biscoitos ou bombons sobre as poltronas. Isto não impediria, claro, que, numa noite qualquer, um chato insone, possivelmente um bacharel em ciências ocultas e letras apagadas, alegasse direitos individuais constitucionais derrapados etc...e aí aquelas lembranças iniciais do motorista “enguiçariam” nas longas estradas judiciais! Durmam, se possível, com mais este desconforto no solavanco da viagem existencial!



(01 de julho/2011)
CooJornal no 742


Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

miltonxili@gmail.com

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