07/05/2011
Ano 14 - Número 734


 

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"Amigo da Cultura"






ARQUIVO
MILTON XIMENES

 

Milton Ximenes Lima



 REENCONTRO



 

Milton Ximenes, colunista - CooJornal


Foto MXL


A rua paralela que, pelo lado norte, acompanha o leito do rio Itapemirim em direção ao leste, se chama simplesmente Moreira. Dela, em determinado ponto e em suave ladeira, sobe a Don Fernando, inclina-se à direita e termina no largo da igreja do Senhor dos Passos.

Senhor dos Passos agora, porque, aos olhos e pés meninos de muitos anos atrás, era a Matriz de São Pedro, padroeiro da cidade, onde se centralizavam as principais festas religiosas do município.

Retorno a Cachoeiro de Itapemirim sozinho, só o sabe quem me hospeda, é o terceiro dia das minhas andanças. Se acaso alguém me reconhecer, tentarei desculpas. Verdade é que procuro sentir e descobrir quais emoções existem ainda aconchegadas às minhas saudades ao passar e revivenciar ruas, casas, praças, paisagens em que brinquei, comecei a descobrir a vida, pessoas que absorveram meus olhares curiosos, primeiros mestres de um “Graça Guardia”, grupo escolar primeiro e de tantos momentos bons... um mundo mais verde, belo, e inconseqüentemente feliz.

Morei no 163 da rua Don Fernando, ao lado da então Matriz. Comecei a freqüentá-la aos sábados, inicialmente. Meninos e meninas da vizinhança, subíamos para o andar do coro, ficávamos no caminho lateral, e, agachados, entre os espaços do parapeito de madeira, apreciávamos os casamentos ricos e pobres, todo mundo elegante ao seu modo, se movimentando sob os rituais da cerimônia, ou parando sob as exigências das obrigatórias fotos finais, quando nos divertíamos com o mesmo esperado estouro e a fumaça espessa do “flash” de magnésio a invadir os ares, assustando os rostos dos fotografados. Ali era nosso refúgio, porque, vestidos com nossas roupas de folguedos, sempre sujas, seríamos, no térreo, recebidos com olhares de censura e desprezo dos convidados.

O bom e gordo Frei Eulálio me capturou peregrinando pela sacristia, me iniciou na sua equipe de coroinhas, com suas batinas negras ou vermelhas, nem sempre ajustáveis ao nosso reduzido tamanho. Fui também apóstolo em “lava-pés”, ajudei nas ladainhas do mês de Maria, até que um dia, ouvindo mal uma orientação em missa solene, deixei de conduzir o pesado missal para um dos lados do altar... Envergonhei-me, censurei-me fortemente aos oito anos de idade e, aos poucos, fui me ausentando de lá.

Aconteceu, então, a morte prematura do meu pai, ausente da cidade, em Cabo Frio. Por causa disto e dos costumes, minha mãe adotou o luto em suas vestes. A cor escura da sua roupa fez brilhar associações em minha mente, a idéia surgiu, ali estava a “batina”. Empilhando caixotes, maiores embaixo, menores em cima, forrando-os com panos largos e compridos, colocando sobre o mais alto um crucifixo, eis o altar, santinhos de papel espalhados pelos degraus laterais formados pelas saliências dos caixotes. Sobre a superfície do caixote inferior, o cálice, ou seja, um copo maior, de alumínio, camuflado sob um guardanapo de pano.

Convocava a garotada, vestia a “batina” da minha mãe, celebrava a missa à moda, padre sempre de frente para o altar, despejava “dominus vobiscu(s), ora pro nobis, agnus dei(s)”e outros decorados latinos, dava comunhão com as sobras das hóstias que o magro “seu”Virgílio, o sacristão, artesanalmente preparava... Vinho, branco, era água...

Quando não tinha platéia, rezava sozinho, sempre aos domingos...

Certo dia, parei no meio da igreja, fiquei olhando as imagens. Na verdade, as media. Pousei meu interesse na de São Tarcísio, pequena, só busto, no altar lateral, à direita, perto da Nossa Senhora das Graças. Fui até a casa paroquial, pedi para falar com Frei Luiz (Atienza), o pároco, que eu queria emprestada a “leve estátua” de São Tarcísio para fazer uma procissão com as crianças da rua! Paciente e eternamente ele ficou de pensar no assunto.

Depois, apareceu lá em casa a prima, bem adolescente. Soube da minha dedicação religiosa, queria me ver rezando uma missa. Foi especial, só para ela. Comentou aos ouvidos da minha mãe:
-É, parece que vamos ter um padre na família, e um padre bem bonitão!

Mamãe observou, não sei se contente ou não:
-O pai dele reclamava muito que, quando ia passear com ele, bem pequeno, ainda, tinha mania de puxá-lo para entrar pelas portas de igrejas. Logo com ele que não era muito chegado a religiosidades!

Estava justamente pensando no medo que, crianças, tínhamos do Senhor dos Passos, de tamanho humano, ajoelhado e ensangüentado sob o peso da cruz, rosto escondido sob imensa cabeleira de fios naturais, parecia de verdade, colocado naquele canto escuro da igreja, quando a voz do senhor de meia-idade me vem esclarecer que é hora de fechar, agora só reabre para a missa da noite, depois da Ave-Maria. Ergo-me lentamente do banco e, na calçada, dominada a claridade agressiva, me encanto com o imaculado céu azul daquele inverno.

Atrás, a grande porta do templo é trancada, sepultando reencontradas andanças velhas desses meus pés hoje tão pecadores. Triste, alegre, alegre, triste vou... sentindo sob meus pisares os mesmos e antigos paralelepípedos da minha terra natal.


(07 de maio/2011)
CooJornal no 734


Milton Ximenes é cronista, contista e poeta
RJ

miltonxili@gmail.com

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