16/07/2023
Ano 25
Número 1.328





ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


UM LADRÃO PREGUIÇOSO

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

A criatividade do escritor belga Georges Simenon (1903/1989) era ilimitada. Entre seus inúmeros personagens, Jules Maigret, comissário da polícia judiciária francesa, tornou-se, sem dúvida, o mais famoso, destacando-se como um dos maiores detetives da literatura universal, ao lado de Sherlock Holmes, Hércule Poirot e raros outros.

Simenon produziu mais de 200 romances (75 deles tendo Maigret como figura central), 155 contos (30 com Maigret) e cerca de 25 textos memorialistas, sem falar nos incontáveis trabalhos publicados apenas na imprensa. Suas memórias são a parte controversa dessa obra abundante, uma vez que nem sempre os fatos narrados se amparam na realidade. Nelas parece ter interferido um pouco o lado “imaginativo” do escritor. Seja como for, Simenon foi dos mais férteis escritores da literatura francesa, dono de prodigiosa imaginação e não menos admirável capacidade de trabalho. Relatam seus biógrafos que, quando escrevia, permanecia recluso em casa, fechado num escritório, levando apenas o cachimbo e o guia telefônico, do qual se valia para extrair nomes de personagens. Quando baixava nele o “animus scribendi” não recebia nem o papa e até seu editor brasileiro deu com a cara na porta quando o procurou numa dessas ocasiões. Na sua concepção, romance não deveria ser muito longo, permitindo que fosse lido de uma só vez, não decaindo assim a tensão psicológica inspirada pelo texto em sucessivas interrupções. Apesar de seu enorme sucesso mundial, na vida privada Simenon foi marcado pela tragédia e vários fatos graves obscureceram sua trajetória. Viveu os últimos anos trancado em casa, recluso entre suas paredes, e só raramente se mostrava em público.

Entre as mais interessantes investigações do célebre comissário está “Maigret e o ladrão preguiçoso” (L&PM Pocket – P. Alegre – 2009), que foi lançado no ano que passou, em tradução de Paulo Nunes. É o relato de um dos mais engenhosos casos que o comissário resolve, ainda que não fosse de sua atribuição, para concluir, de maneira fatalista, que nada aconteceria diante da absoluta fragilidade da prova indiciária existente. Em paralelo, como se fosse assunto secundário, também é desvendado o caso principal, aquele a que a cúpula policial dedicava o maior empenho. O ladrão, porém, foi encontrado morto em local e circunstâncias estranhas, insinuando-se que se tratava de mero “acerto de contas”, conclusão que o faro policial de Maigret repeliu de pronto. É que o ladrão estava acima de qualquer suspeita, nem a mãe e a mulher com quem vivia imaginariam que exercia semelhante atividade. Homem tranquilo, sempre calmo e sereno, bem trajado e limpo, parecia um burocrata bem comportado, ainda que seus meios de vida fossem ignorados. Mas a dura realidade, que a todos espantou, revelou um ladrão ardiloso, dotado de inteligência invulgar e paciência beneditina, sempre disposto a observar com atenção a futura vítima antes de desferir o golpe. Jamais assaltava casas desocupadas, invadindo-as na calada da noite, como que desafiando as próprias vítimas, até que cometeu uma falha, talvez pequena, e que lhe foi fatal. Sua própria mãe, quando investigada, declarou que tinha certeza de que seu filho não a deixaria desamparada, como de fato aconteceu. Essas as linhas gerais da história, além das quais não me arrisco a avançar sob pena de retirar do leitor o prazer da surpresa.

Como, porém, o ladrão resguardou o futuro da mãe, velha e doente? Bem, esse detalhe Maigret sugere, mas não o revela por inteiro. Afinal, é preciso deixar algo à imaginação do leitor.


(06 de março/2010)
CooJornal no 674

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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC





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