16/01/2023
Ano 25
Número 1.314





ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


O DESTINO DE ANDAR EM CÍRCULOS

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Existem livros cuja função é iluminar caminhos, às vezes obscuros e vislumbrados de forma confusa, indicando com segurança o rumo a tomar. É o caso de “Brasil – Síntese da Evolução Social”, de Aluysio Mendonça Sampaio, que acaba de ser lançado em segunda edição (JB Literatura Brasileira/Scortecci Editora – S. Paulo – 2004). Trata-se de acurado ensaio de história social que procura “desvendar as características fundamentais de nossa formação e desenvolvimento” através de uma análise científica da realidade nacional lastreada em vasta pesquisa, realizada ao longo de anos de observações dos atos e fatos que fixaram etapas de nosso passado e suas conseqüências na vida do país. Em linguagem simples e direta, debruça-se sobre a história do Brasil, desde a descoberta e as três décadas iniciais, procurando explicar a formação e as características de nossa sociedade, suas contradições internas e externas, e as circunstâncias que conduziram nosso país ao que é hoje.

Mostra o ensaísta que o início de nossa história se resumiu ao encontro do português com o indígena, colocando frente a frente duas culturas em estágios muito diferentes: o europeu civilizado e o silvícola na idade da pedra. Como este nada tinha, na prática, a oferecer nos escambos, tornou-se ele próprio objeto da cobiça do invasor, transformando-se em escravo, fornecedor de mão-de-obra barata para as empreitadas lusas. Sem grande interesse pela nova colônia, os portugueses só se decidiram a povoá-la ante o risco de perdê-la para os arrojados franceses. Não dispondo de recursos para tanto, tiveram que apelar à iniciativa privada, instituindo grandes propriedades territoriais (capitanias e sesmarias). Dessa forma, conjugando os interesses da coroa com a cobiça dos colonos, transplantaram para cá um regime fundiário feudal, semelhante ao europeu da Idade Média, e no qual o donatário detinha quase os mesmos poderes do senhor feudal. Assim, pelas contingências do momento histórico, a sociedade brasileira aliou o latifúndio à escravidão, objetivando a exportação. Em resumo: surgiu uma sociedade feudal-escravocrata do tipo colonial.

Delineiam-se, nesse contexto, a aristocracia rural brasileira, baseada na propriedade de escravos e da terra, e abaixo dela as demais classes sociais (sesmeiros, lavradores livres e obrigados, rendeiros, pessoas livres e semi-livres – os chamados “práticos” ou “curiosos” – e no rés-do-chão os escravos índios e negros). Com o encarecimento dos escravos, o poder aos poucos se transferiu para a terra e o latifundiário assumiu o domínio do país, por si ou pelos prepostos. Seu poder se media pelas áreas que possuía, algumas tão grandes que se tornavam auto-suficientes. Nessas fazendas só se comprova sal, ferro e chumbo – jactavam-se os proprietários. Sua influência, em conseqüência, se estendia pelo país como tentáculos que interferiam na máquina governamental e na ideologia dominante, forjando inclusive o velho mandonismo nacional: “Quem chegou a ter títulos de senhor, parece que em todos quer dependência de servos” – escreveu Antonil. Enquanto volviam os anos, o país crescia e a população aumentava, o fazendeiro ou senhor de engenho mandava e desmandava, impedindo a todo custo qualquer alteração da propriedade rural, ao mesmo tempo em que o trabalho constituía objeto de desprezo pela aristocracia dominante.

Depois de apontar essas características dominantes, parte o ensaísta para o exame de nossa evolução social, pari passu com a economia e a política de cada fase. O trinômio latifúndio-escravatura-colinialismo resiste às tentativas de modernização, mesmo diante de crises mais e menos graves. Sobrevêm a trasladação da família real, a abertura dos portos às nações amigas, a independência, o fim do tráfico negreiro, a abolição, a república, o tenentismo, a revolução de 1930, as Constituições de 1934, 1937 e 1946, com o Estado Novo de permeio, o golpe de 1964 e, por fim, a Constituição de 1988. Nesse longo e sofrido período, plasma-se uma população urbana, surgem as massas assalariadas, desenvolvem-se as preocupações sociais, nascem a previdência social e a legislação do trabalho, o país passa de “essencialmente agrícola” para a industrialização e, no entanto, frustradas as tentativas, proclamações de ordem constitucional, estatutos, leis e movimentos, a estrutura fundiária permanece quase a mesma, imutável, intangível, au delá du bien et du mal, desafiando a imperiosa necessidade de uma profunda reforma agrária e de políticas sérias para a fixação do homem no campo. Até mesmo a legislação trabalhista, proclamada como das mais avançadas, se restringe ao operário urbano, não se atrevendo a tocar nos rurais submetidos ao supremo poder do latifúndio. Nem o êxodo para as cidades, nem a favelização, nem o crime organizado, nem a corrupção, nem a fuga da juventude para outros países – nada parece abalar o latifúndio improdutivo presente em todas as regiões do país. Foram séculos em que o Brasil pareceu destinado a andar em círculos.

Emergindo a duras penas de duas décadas de autoritarismo explícito, tateia o país em busca de saídas. Confuso, comete erro sobre erro, frustrando-se as esperanças uma depois da outra. Nem mesmo o atual governo parece dar à reforma agrária a prioridade absoluta exigida pelo país, permitindo-lhe, afinal, encarar o futuro com relativa confiança. Enredado num cipoal que combina globalização, neoliberalismo, privatização e domínio imperialista, vive o povo assombrado pelo fantasma do desemprego, asfixiado pelos juros usurários e temeroso da violência crescente, sem saber como encarar os dias que virão, mesmo porque, na maioria das vezes, não consegue entender as razões dos males que o assoberbam. A despeito de tudo, porém, o país tem saída e futuro, desde que o povo, bem orientado pelos intelectuais e líderes, saiba interpretar o passado e dele tirar as lições que evitem erros de conseqüências graves e duradouras. Para isso o livro de Aluysio Mendonça Sampaio é instrumento indispensável, lançando luzes sobre o que ficou para trás e iluminando os passos seguintes. Precisa ser lido, relido, discutido e divulgado nas suas lúcidas lições de Brasil e de brasilidade por todos aqueles que se preocupam de verdade com nossa terra e nossa gente.


(28 de novembro/2009)
CooJornal no 660

Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC





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