01/11/2023
Ano 27
Número 1.341





ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


A SAGA DE ZUMBI

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


Conhecidos, em geral, de maneira superficial, os episódios do Quilombo de Palmares, liderados por Zumbi, constituem passagens muito interessantes de nossa História e se inscrevem entre os grandes movimentos libertários de todo o mundo. Embora tenha resistido por 64 anos, entre 1630 e 1694, repelindo de forma sistemática os diversos ataques sofridos, esse quisto negro instalado em território nacional costuma ser abordado de forma ligeira, quando não é omitido, em nossa historiografia oficial. Nos anais históricos estrangeiros, no entanto, costuma ser abordado com minúcia e destaque.

Constituído por uma série de aldeias semelhantes às africanas, - os mocambos, - esse quilombo se estendia por uma área de cerca de 60 léguas, entre as serras da Barriga e da Jussara, no município de União dos Palmares, no atual Estado de Alagoas, ambos inexistentes na época. Local elevado, de difícil acesso e penetração, dotado de terras férteis e águas abundantes, era coberto por densas florestas que forneciam madeira para as construções, caça e pesca em quantidade para a alimentação dos moradores. A cidade mais próxima, distante umas 20 léguas, foi Porto Calvo, o mais importante centro urbano da região. “Cerca Real do Macaco” abrigava uma espécie de capital do quilombo, com aproximadamente 1500 construções, ao redor da qual se erguiam os chamados “mocambos de apoio”. A população total do quilombo foi estimada em 20.000 pessoas. Seu nome se deve à grande quantidade de palmeiras ali existentes até hoje.

Como informa o historiador Audemário Lins, expert no tema, “o Quilombo dos Palmares foi inicialmente formado com os primeiros escravos fugidos de alguns engenhos que se situavam nas vizinhanças da vila de Porto Calvo. No início do ano de 1542, um escravo importado de Angola, de nome Gungadin, fugindo do engenho Nossa Senhora da Ajuda, juntamente com outros escravos, se dispersaram nas matas e naquele local isolado do mundo fundaram o primeiro quilombo. Daí por diante, deram começo a uma série de outros mocambos e através de grandes esforços conseguiram provisoriamente a tão desejada liberdade. Naquela moradia improvisada, esqueciam a senzala, o tronco e tantos outros locais de sofrimento e de humilhação” (“Zumbi, o rebelde herói negro”, S.Paulo/Maceió, Editora Catavento, 2001, Pág. 31).

O angolano Gungadin teria sido, portanto, o pioneiro dos quilombolas, afrontando a férrea autoridade do senhor-de-engenho e correndo o risco de cair nas mãos dos temíveis capitães-de-mato, caçadores implacáveis de cativos foragidos. Os maus tratos, porém, eram de tal severidade e as tarefas impostas tão absurdas que os negros enfrentavam quaisquer perigos, inclusive mortais, na tentativa de respirar o ar da liberdade, ainda que precário e repleto de temores. Muitos preferiam o próprio suicídio a retornar ao cativeiro, lançando-se de propósito contra as armas agressoras. Nos dias atuais poucos se detêm na análise das barbaridades cometidas pelos escravistas. Talvez seja porque recordem a maior nódoa de nossa civilização que esses episódios costumam ser escamoteados.

Foi do engenho Escorial que partiram, fugidos, os primeiros escravos que deram início ao quilombo de Palmares. Não suportando os maus tratos, ganharam as matas e foram, aos poucos, se fixar naquelas serras íngremes e inacessíveis. Preocupados com as invasões francesas, os governantes não tiveram tempo e recursos para se voltarem contra a cidadela negra que se implantava na floresta virgem. Os quilombolas, informa o historiador antes referido, “aproveitaram o precioso tempo para construir um imenso cercado de madeira e de pedra, e no mesmo período plantaram uma vasta área de fruteiras, cujos sítios se tornaram belos pomares” (Op. cit., Pág. 34). Com a difusão da notícia de que os foragidos haviam conquistado, enfim, a liberdade, começou a afluência de escravos de outros locais e o quilombo não cessou de crescer. Nele vigorava uma disciplina rígida, com regras instituídas pelos moradores, e o trabalho constituía uma obrigação de todos. Os conflitos quase não existiam e tudo pertencia a todos, numa espécie de socialismo rústico. Trataram também de organizar uma espécie de dispositivo militar com homens treinados para os combates. Reinava no quilombo o rei Ganga-Zumba.

Enquanto isso, na vila de Porto Calvo, crescia o menino Zumbi, cuja infância e juventude foram assim resumidas pelo mencionado autor: “Zumbi era natural de Porto Calvo. Nasceu e se criou entre a casa paroquial e a sacristia da igreja nova, atual Nossa Senhora da Apresentação. Durante os primeiros anos de sua infância ele demonstrava possuir um caráter agressivo e perigoso. O nosso herói era o que se chama um perfeito boxeador. Os seus certeiros socos e as suas proezas com os pés e as mãos corriam de boca em boca entre os portocalvenses. Um dia, um mensageiro negro apareceu, de repente, portando uma missiva enviada pelo seu tio, o rei Ganga-Zumba, chefe supremo do quilombo de Palmares, convidando-o a fugir com destino a seu reino...” (Op. cit., Págs. 44 e 45). E assim o jovem se instalou em terras quilombolas, onde cresceu impregnado dos sonhos de liberdade nele vigentes, e de tudo participando. Como um dos chefes dos mocambos e membro do conselho, foi indicado pelo rei, seu tio, já cansado de tantas lutas, para sucedê-lo. E nessa função se revelou hábil na administração e na guerra, tornando-se verdadeiro herói negro, até hoje lembrado como exemplo de coragem e decisão. Sabia aliar autoridade com habilidade administrativa, além de ter sido um admirável estrategista nas batalhas em defesa de seu povo.

Embora escravo alforriado Zumbi entendia que a liberdade deveria se estender a todo seu povo e por isso passou a viver com ele, tornando-se seu líder. As notícias a respeito de sua força, decisão e coragem fizeram dele o homem mais temido pelas autoridades, senhores-de-engenho e militares da época. Seu nome despertava o receio permanente dos inimigos e, ao mesmo tempo, reforçava a confiança de sua gente. Sob sua orientação, interceptavam-se mercadorias destinadas às fazendas e engenhos, organizavam-se ataques para libertação de outros escravos e atos de verdadeira guerrilha que começaram a ameaçar de forma séria todas as propriedades da região e até mesmo as vilas. Muitos moradores preferiam negociar com os quilombolas, evitando o confronto, numa demonstração de que os habitantes dos mocambos começavam a ser aceitos como iguais. Com isso não concordava, porém, o poder constituído e os ataques contra Palmares se tornaram cada vez mais violentos e freqüentes. O quilombo entrou em crise, as lavouras diminuíram, a produção se reduziu, as roças foram arrasadas pelos inimigos, o cerco foi se apertando. O capitão Furtado de Mendonça, comandando grande contingente de soldados, por determinação do governo da capitania de Pernambuco, atacou Palmares com a decisão de dizimar até seu último habitante. Mesmo lutando até o fim. Zumbi pereceu trespassado pelas balas e degolado a sangue frio, diante de sua loira mulher – Maria. Dando vivas à liberdade. Em desespero, a mulher teria se lançado ao abismo, falecendo na queda. (Outra versão afirma que o ataque foi comandado pelo bandeirante paulista Domingos Jorge Velho e que Zumbi, ainda que ferido, conseguira escapar, sendo morto somente no ano seguinte), E assim, a ferro e fogo, encontrou seu fim a cidadela erigida pelos negros que não queriam mais que o direito de viver em liberdade.

Em maio de 2004, numa viagem a Alagoas, minha mulher e eu decidimos visitar aquela região e conhecer in loco o palco desses acontecimentos. Seguindo no rumo norte, em direção à divisa de Pernambuco, chegamos a União dos Palmares, distante 81 quilômetros de Maceió. Como fosse um sábado, aproveitamos para visitar a feira livre, cujas barracas se estendiam por quase toda a cidade, com a incrível quantidade de toldos das mais variadas cores tomando as ruas e vendendo tudo que se possa imaginar, desde frutas e obras de artesanato até bois vivos, numa impressionante profusão de mercadorias. Tons de pregões, conversas, músicas e sons indefiníveis enchiam o ar de um bruaá impossível de descrever. Caminhões “paus de arara” chegavam e partiam para todos os recantos do sertão, do agreste e da zona da mata, trilhando por entre o mar de canaviais. Caminhonetes, carroças, charretes, carrinhos-de-mão, cargueiros – tudo servia para transportar para lá e para cá os produtos dos negócios. Depois de muitas andanças, percorremos a cidade, observando inclusive a “Casa do Poeta Jorge de Lima”, lá nascido, e o “Museu Maria Mariá.”

Mesmo com o chão molhado pelas recentes chuvas, enfrentamos a subida para o topo da Serra da Barriga, onde ficava o quartel-general do quilombo. Graças à perícia e à coragem do motorista, João, percorremos os quinze quilômetros de curvas que margeiam despenhadeiros assustadores e vencemos aquela subida tão empinada que parece demandar ao céu. Por caminhos estreitos e cobertos de capim, alcançamos a torre da Embratel, erguida à beira do precipício, de onde se avista toda a região, as serras e a planície, lá embaixo. Ali ficava o posto das sentinelas do reduto, de modo que ninguém poderia se aproximar sem ser avistado. Mais adiante, num grande platô, deparamos com o local em que funcionava o comando do quilombo. Dali se enxerga todo o vale onde se espalhavam os mocambos e, mais adiante, a Serra da Jussara. Tudo verdejando, coberto de matas e árvores frutíferas, creio que descendentes daquelas plantadas em grande número pelos quilombolas. A estátua de Zumbi e de outras figuras destacadas, placas comemorativas e mirantes ali se encontram, lembrando que aquele é o chão da liberdade e permitindo espraiar a vista em derredor, até o ponto em que céu e montanha se misturam num azulado indistinto. Em algumas cabanas, cobertas de palha, se desenvolvem, todos os anos, solenidades, representações e performances lembrando os episódios do quilombo e mantendo viva sua memória.

Observando lá do alto é mais fácil compreender como aquele povo, com minguados recursos e armas, pôde resistir por mais de meio século ao constante assédio dos exércitos oficiais aliados ao poder econômico.


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Fontes:
“Enciclopédia Brasileira Globo”, P. Alegre, 1971, Vol. IX.
“Zumbi, o rebelde herói negro”, Audemário Lins, S. Paulo/Maceió, Edições Catavento, 2001.
“Casa-Grande & Senzala”, Gilberto Freyre, Rio de Janeiro, Livraria e Editora José Olympio, 1983.
“Guia do Nordeste”, Editora Abril/4 Rodas, 2004.
Folhetos da Prefeitura Municipal de União dos Palmares (AL) e informações obtidas no local.
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(22 de agosto/2009)
CooJornal no 646



Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br  



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC



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