16/08/2023
Ano 26
Número 1.330





ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


CRIADOR E CRIATURA

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


Os leitores de Georges Simenon (1903/1989), já cansados de passar e repassar os livros publicados em português, podem agora saborear mais uma de suas obras, em tradução de Paulo Neves. Trata-se de “Memórias de Maigret” (Nova Fronteira/L&PM Pocket – 2006), uma das mais originais e instigantes produções do criador do célebre Comissário Jules Maigret, da Polícia Judiciária Francesa, e personagem central de nada menos que 75 romances e 28 contos e que compõe, com Sherlock Holmes e Hercule Poirot, o maior e mais célebre trio de investigadores policiais do mundo e cujo autor André Gide considerava “um grande romancista, o maior e o mais verdadeiro da literatura francesa contemporânea.” Segundo julgamento unânime, Maigret é o mais humano e compreensivo dos detetives de ficção, não se limitando apenas a desvendar o crime e apontar seu autor à Justiça, mas tentando compreender os tortuosos motivos que levaram um ser humano àquele ato. É verdade que muitas vezes fica a impressão de que ele adivinha, tão diminutos são os elementos com que conta na investigação. Mas essa é outra história.

Neste romance tudo é surpreendente. Embora intitulado como memórias, na verdade é pura ficção, uma vez que nele a única figura real é o autor. Depois de longos anos de atividade policial que lhe valeram fama universal, Maigret – o personagem fictício – decide escrever suas memórias, relembrando os grandes casos em que atuou e sua vida de policial, desde o início, incluindo-se aí seu contato com Simenon – o autor – e a profunda amizade que entre eles se firmou. Na história, portanto, o autor se transforma em personagem de sua própria criatura e, o que é mais interessante, Simenon é descrito como sendo mais jovem que Maigret, o que implicaria em imaginar que a criatura nasceu antes do criador. Para completar, o texto vai fazendo menção a fatos verídicos da vida de Simenon, coincidentes mais ou menos com as datas reais, o que provoca surpresas muito curiosas. Como exemplo, basta lembrar que Louise, a mulher de Maigret, pede que ele comunique a Simenon que ela está tricotando sapatinhos para Jean, primeiro filho de Simenon e Denyse Ouimet, nascido em 1949.

Outro aspecto curioso é a análise retrospectiva que Maigret faz de sua própria vida conforme ela é narrada nas obras de Simenon. É um personagem de ficção analisando a obra de ficção na qual ele é o personagem. Nesses relances sobre o passado, ele relembra como o destino o levou à carreira policial, mais ou menos por obra do acaso e graças a um vizinho que o ajudou nos primeiros passos. E conclui que estava no lugar certo, no seu lugar, sem ambicionar um destino além de sua capacidade. A pessoa fora de seu lugar, conclui ele, vai se debatendo pela vida a fora porque na vida real é raro encontrar um consertador de destinos, como ocorre na ficção. Por isso, na sua vida modesta, ao lado da discreta Louise, Jules Maigret sente-se feliz e realizado.

(08 de setembro/2007)
RT, CooJornal no 545

Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br  



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC





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