16/06/2007
Ano 11 - Número 533
ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio
AS TRÊS
MORTES DE RANGEL |
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Convidado por um colégio para
falar sobre Godofredo Rangel (1884/1951), fiquei surpreso com o interesse
da moçada por um escritor que anda tão esquecido e ausente das páginas
literárias. Romancista, novelista, contista, crítico e gramático, ele foi
uma das grandes figuras do período pré-modernista e seu livro de estréia,
“Vida Ociosa” (1920), é considerado autêntica obra-prima de nossas letras,
um dos raros livros nacionais que podem ser colocados entre Machado e
Euclides.
Apesar da qualidade de sua obra e do louvor da crítica, Rangel não teve
sucesso. Amigo íntimo de Monteiro Lobato, com quem pertenceu ao “Grupo do
Minarete”, de que foi o fundador, foi vítima dessa amizade. Como a árvore
que, embora frondosa, tem o destino de nascer ao lado do carvalho
majestoso, Rangel foi obscurecido pela sombra do amigo, a maior estrela da
época. É verdade que Monteiro Lobato, consciente do talento de Rangel,
tudo fez para reparar a injustiça, mas foi inútil: todas as atenções se
voltavam para ele. Por paradoxal que fosse, Rangel pagou alto preço pela
amizade do criador do “Sítio do Picapau Amarelo.”
Outros fatores, no entanto, muito mais graves, contribuíram de forma
decisiva para que Rangel caísse no ostracismo. O primeiro deles foi sua
própria família. Desinteressada da sorte do escritor, ciumenta de seus
guardados, nunca facilitou as pesquisas dos interessados. Como estudioso
da vida e da obra do escritor, até hoje seu único biógrafo, nunca obtive
dos familiares a menor ajuda. Amigos de outras cidades, pessoas estranhas,
colaboraram mais com meu trabalho que a família. Até mesmo as obras
completas de Rangel eu obtive em livrarias e sebos paulistas, sem a menor
colaboração de quem tanto poderia ter facilitado meu trabalho. Seja como
for, a biografia foi publicada (“O Amigo Escrito”) numa edição grande e
hoje esgotada. Mas o desinteresse da família foi, sem dúvida, a causa da
primeira morte literária do infeliz Godofredo Rangel.
Como se isso não bastasse, um dos maiores críticos brasileiros, o único
ainda militante, tomou partido definitivo contra Rangel: Wilson Martins.
Tomado de ira contra o escritor, partindo da impressão que lhe provocou
“Vida Ociosa”, e, ao que me parece, sem levar em conta o restante da obra,
desancou-o em mais de uma oportunidade através dos grandes jornais que
publicam sua coluna. Isso aconteceu quando se batalhava pela publicação de
novas edições das obras de Rangel e vários professores universitários se
interessavam por elas. Embora a crítica virulenta poupasse o biógrafo
(eu), não poupava o biografado (Rangel). Foi água na fervura; o interesse
arrefeceu, os editores se assustaram, e Godofredo Rangel morreu para as
letras pela segunda vez. Fiquei, desde então, com a sensação de que mestre
Wilson Martins não gosta da vida simples, dos humildes e das pequenas
coisas da vida – justamente aquilo que Rangel retrata.
Para finalizar, depois de muitíssima luta, conversas, tratativas,
encontros, cartas, vai-e-vem interminável, uma editora do Rio de Janeiro
acabou publicando nova edição de “Vida Ociosa.” Mas o livro não foi
divulgado, a distribuição deixou a desejar, e ninguém tomou conhecimento.
O grande romance rangelino continua tão esgotado como antes. Foi a
terceira morte de Rangel.
Na linguagem popular, Godofredo Rangel é um “azarado.” Não existe caso, em
nossas letras, de escritor tão perseguido pela má sorte, mesmo depois de
morto há meio século. Por essa razão, ainda que remando contra a maré,
compareci ao colégio e falei sobre o inditoso Rangel. Pelo menos por
alguns minutos ele ressuscitou de sua tríplice morte para aqueles que lá
estavam.
(16 de junho/2007)
CooJornal no 533
Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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