Numa releitura vagarosa
e atenta de “O Acampamento” (*), o celebrado poema de Aricy
Curvello renovou a funda impressão que sempre me causou, antes de mais
nada por ligar duas coisas que muito me tocam - a poesia e a selva. No
trilhar lento de seus versos, vou anotando mentalmente as idéias e
sugestões que ele inspira em mim, numa leitura muito pessoal e
impressionista que ignoro se afina ou não com o crivo da melhor crítica.
Seja como for, é a minha leitura, o meu viés, a minha visão.
O poema, concebido em
momento de elevada inspiração, retém o impacto provocado na alma sensível
do poeta no período vital em que se deparou na imensidão da floresta,
gerando no seu íntimo a inquietante dúvida: “onde a floresta começa, o
Brasil acaba?” Questão justificada quando se sabe que o poeta é mineiro,
familiarizado com as Alterosas, e se vê transplantado num relance ao
cenário amazônico. A vastidão, o verde infinito, o isolamento, o silêncio,
o rio escoando águas barrentas, o céu encoberto pela galharia, a pesada
sensação de abandono. E ele ali, sem avistar “sequer um povoado de
moscas”, largado em “um rasgão, no devastado, para se residir.”
Completando o quadro, “para os lados e por detrás, floresta ainda.
Adiante, para a frente, na outra margem do rio...”
Absorvido o choque
inicial, outra realidade fere a sensibilidade do poeta: a verdadeira
invasão que representa ali o acampamento que nomina o poema. “Barracões
contra o rio, o ermo contra as tábuas” – exclama ele,
acentuando numa palavra o contraste daqueles elementos estranhos com a
natureza selvagem e agreste. “A relva pisada em volta das casas”, anota
mais de uma vez, revelando passos estranhos ao natural das coisas,
presença de seres de cujas ações “abriam-se cozinhas de
gorduras...ossos...apodrecer...cadáveres...e arrebentam a terra para as
florestas perecerem...” A violência alarmante, escancarada, crua, que
choca e entristece. “Não, não assassinar a luz!” – suplica o poeta com voz
embargada e, não obstante, sem eco.
E tudo aquilo, afinal,
tem caráter passageiro, ainda que as lembranças se fixem para sempre no
mais íntimo do poeta. Os homens ali estão “acampados no provisório”, em
“um tempo em que se viaja sem bagagem”, em “um tempo sem respostas” (mesmo
porque não perguntam). Não há “senão fluxo e passagem... num instante
veloz...irreparável...só a rapidez no acampamento, contra a
floresta e o rio...” E, no entanto, a natureza poderosa persiste “na luz
limpíssima, na verdeluz, nas árvores porém verdes e vivas, no mundo
verdeal, nos peixes de seda, na fruta-pupunha, no verniz das tartarugas,
nos pássaros tucanos brilhando nos cimos, nos colorados estandartes em
bandos de vôos, nessa paisagem além da paisagem...” A natureza, apesar de
tudo, resiste ou, pelo menos, tenta.
Mas os homens, ah! “os
homens não buscam a luz do rio. Querem apenas bauxita bauxita bauxita – e
alumínio. O governo quer alumínio ferro ouro cobre cassiterita chumbo
níquel...” Então, “outras cores (queimadas) se acrescentaram...florestas
pereceram sob as primeiras estradas...(surgiram) galpões de sujos
instrumentos...núcleos esparsos de povo nos povoados perdidos...” No
acampamento de “relva pisada em volta das casas...a terra verdesuja...casas
interminadas...barracões de alumínio e galhos derrubados”, a terrível
conclusão: “Era verde!”
Ponto alto na poética de
Aricy Curvello, “O Acampamento” reúne a boa técnica com o conteúdo
forte. Sua mensagem toca o leitor pela beleza melancólica e, ao mesmo
tempo, constitui um brado de alerta sobre a Amazônia e seu destino. É uma
voz que se levanta para que ela não seja também algo provisório como
tantas coisas neste país. Sua leitura me faz vibrar e me proporciona
momentos de enlevo com a boa poesia.
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(*) “O Acampamento”,
Florianópolis, Coleção Broquéis, 5a, ed., 2004.
(31 de março/2007)
CooJornal no 522