31/03/2007
Ano 10 - Número 522


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

OS HOMENS NÃO BUSCAM A LUZ DO RIO

 

Numa releitura vagarosa e atenta de “O Acampamento” (*), o celebrado poema de Aricy Curvello renovou a funda impressão que sempre me causou, antes de mais nada por ligar duas coisas que muito me tocam - a poesia e a selva. No trilhar lento de seus versos, vou anotando mentalmente as idéias e sugestões que ele inspira em mim, numa leitura muito pessoal e impressionista que ignoro se afina ou não com o crivo da melhor crítica. Seja como for, é a minha leitura, o meu viés, a minha visão.

O poema, concebido em momento de elevada inspiração, retém o impacto provocado na alma sensível do poeta no período vital em que se deparou na imensidão da floresta, gerando no seu íntimo a inquietante dúvida: “onde a floresta começa, o Brasil acaba?” Questão justificada quando se sabe que o poeta é mineiro, familiarizado com as Alterosas, e se vê transplantado num relance ao cenário amazônico. A vastidão, o verde infinito, o isolamento, o silêncio, o rio escoando águas barrentas, o céu encoberto pela galharia, a pesada sensação de abandono. E ele ali, sem avistar “sequer um povoado de moscas”, largado em “um rasgão, no devastado, para se residir.” Completando o quadro, “para os lados e por detrás, floresta ainda. Adiante, para a frente, na outra margem do rio...”

Absorvido o choque inicial, outra realidade fere a sensibilidade do poeta: a verdadeira invasão que representa ali o acampamento que nomina o poema. “Barracões contra o rio, o ermo contra as tábuas” – exclama ele, acentuando numa palavra o contraste daqueles elementos estranhos com a natureza selvagem e agreste. “A relva pisada em volta das casas”, anota mais de uma vez, revelando passos estranhos ao natural das coisas, presença de seres de cujas ações “abriam-se cozinhas de gorduras...ossos...apodrecer...cadáveres...e arrebentam a terra para as florestas perecerem...” A violência alarmante, escancarada, crua, que choca e entristece. “Não, não assassinar a luz!” – suplica o poeta com voz embargada e, não obstante, sem eco.

E tudo aquilo, afinal, tem caráter passageiro, ainda que as lembranças se fixem para sempre no mais íntimo do poeta. Os homens ali estão “acampados no provisório”, em “um tempo em que se viaja sem bagagem”, em “um tempo sem respostas” (mesmo porque não perguntam). Não há “senão fluxo e passagem... num instante veloz...irreparável...só a rapidez no acampamento, contra a floresta e o rio...” E, no entanto, a natureza poderosa persiste “na luz limpíssima, na verdeluz, nas árvores porém verdes e vivas, no mundo verdeal, nos peixes de seda, na fruta-pupunha, no verniz das tartarugas, nos pássaros tucanos brilhando nos cimos, nos colorados estandartes em bandos de vôos, nessa paisagem além da paisagem...” A natureza, apesar de tudo, resiste ou, pelo menos, tenta.

Mas os homens, ah! “os homens não buscam a luz do rio. Querem apenas bauxita bauxita bauxita – e alumínio. O governo quer alumínio ferro ouro cobre cassiterita chumbo níquel...” Então, “outras cores (queimadas) se acrescentaram...florestas pereceram sob as primeiras estradas...(surgiram) galpões de sujos instrumentos...núcleos esparsos de povo nos povoados perdidos...” No acampamento de “relva pisada em volta das casas...a terra verdesuja...casas interminadas...barracões de alumínio e galhos derrubados”, a terrível conclusão: “Era verde!”

Ponto alto na poética de Aricy Curvello, “O Acampamento” reúne a boa técnica com o conteúdo forte. Sua mensagem toca o leitor pela beleza melancólica e, ao mesmo tempo, constitui um brado de alerta sobre a Amazônia e seu destino. É uma voz que se levanta para que ela não seja também algo provisório como tantas coisas neste país. Sua leitura me faz vibrar e me proporciona momentos de enlevo com a boa poesia.

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(*) “O Acampamento”, Florianópolis, Coleção Broquéis, 5a, ed., 2004.    




(31 de março/2007)
CooJornal no 522


Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC