24/03/2007
Ano 10 - Número 521


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

O RIO INVISÍVEL

 

Em 12 de julho de 1904, em Parral, no Chile, nascia Ricardo Neftalí Reyes y Basoalto, aquele que a partir de 1920 adotaria o nome profissional e literário de Pablo Neruda, um dos poucos escritores latino-americanos a receber o Prêmio Nobel e o mais célebre de todos, conhecido no mundo inteiro, detentor de incontáveis dignidades e dos maiores prêmios literários. Faleceu em Santiago do Chile, em 1973, poucos dias após o golpe que implantaria naquele país uma das mais sangrentas ditaduras da história de nosso continente. Para comemorar o centenário, marcado por eventos em vários recantos do planeta, acabo de reler “O Rio Invisível”, antologia em prosa e verso, reunindo os mais antigos trabalhos do poeta, aqueles que ele produziu na juventude, alguns quando tinha cerca de quatorze anos de idade. Publicado pela Bertrand Brasil, do Rio de Janeiro, em 1998, foi traduzido com esmero por Rolando Roque da Silva. O volume foi organizado por Matilde Neruda, viúva do poeta, cujo nome de solteira era Matilde Urrutia, e anotado por Jorge Edwards, um dos maiores conhecedores da obra do poeta e autor da excelente biografia “Adeus Poeta”, traduzida e publicada no Brasil. “Por isso levo um invisível rio em minhas veias”, versos de um de seus poemas, é a epígrafe que introduz ao livro.

Embora escritos na extrema juventude, naquela fase em que a vida é uma surpresa e as experiências são poucas, os trabalhos já revelam o grande poeta e prosador que viria a ser seu autor, mestre no manuseio da palavra e na justa expressão de idéias e sentimentos. Além da admirável riqueza de linguagem numa pessoa tão jovem, fornece indicações de rumos que ele tomaria na vida, tornando-se um “globe-trotter” como poucos, misto de aventureiro, revolucionário e intelectual voltado para as causas dos infelizes, contribuindo de forma decisiva para a disseminação de sua poesia. Alguns de seus poemas foram declamados em tantos lugares e ocasiões que quase se tornaram canções de luta, como o célebre “Poema XX”, o preferido de Gabriel García Márquez. “Confesso que Vivi” e “Pelas Praias do Mundo”, livros de suas memórias, têm sido dos mais lidos no gênero em todo o mundo, reconstruindo uma vida rica de incidentes, aventuras e obras literárias. Mesmo aureolado pelo sucesso, jamais deixou de ser um homem do povo e vibrava quando alguma pessoa anônima recitava seus versos. Seu eterno coração de menino o levava a colecionar brinquedos, caravelas, moluscos, originais de obras literárias e livros. “Isla Negra”, sua célebre morada, se tornou atração turística, conhecida no mundo inteiro.

Neste livro, em passagens premonitórias, já surgia a invencível inquietação que o levaria pelas estradas, rotas aéreas e percursos marítimos mundiais. Como o poeta ansiava pelas luzes da verdadeira poesia, o homem ansiava pelos caminhos. “Desejo de ir andando por todos os caminhos do mundo;/ caminhos agrestes de verdor e de luz,/ caminhos cegos da noite,/ caminhos gloriosos de sol...” – escrevia em “Os Minutos Singelos” (Pág. 33). “De costas em meu leito, sinto um vago/ desejo de adorar essas distâncias,/ de me perder na cerração dos lagos,/ de me cegar na luz dessa alegria” – exclamou em “O Desejo de ir embora” (Pág. 37). Por outro lado, mesmo transformado em cidadão do mundo, não esquece a aldeia natal e suas lembranças nele se grudam como visgo vitalício. “Também é verdade que as coisas jamais acabam definitivamente, menos ainda o passado... (Pág. 173). “Como essas lembranças que, apesar do tempo, conservam ainda sua pegada inexprimível nas curvas do coração...Velhas lembranças, submersas na água do tempo, me assaltam” (Pág. 160). São trechos de “Glosas à Província”, onde ele desfia, uma a uma, as saudades da aldeia, das fisionomias amigas, das areias do chão removido, do silêncio reconfortante e da paz tranqüilizadora. Dentro dele, se debatem o desejo de ficar e a ânsia de partir, afogueando o coração do poeta dividido.




(24 de março/2007)
CooJornal no 521


Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC