27/01/2007
Ano 10 - Número 513
ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO
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Enéas Athanázio
PASSARELAS AMAZÔNICAS
Diário de uma expedição à floresta
(Jandira e Enéas – Maio de 2001)
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Dia 11, 6a f.
Acordamos pelas 4,00h para chegar a tempo no aeroporto. O carro da agência
“Multinvest” nos esperava. Partimos de Navegantes pelas 6,30h com destino
a Porto Velho (RO), fazendo as complicadas conexões em São Paulo e
Brasília, esta bastante demorada, e uma escala em Cuiabá. Chegamos à
capital de Rondônia pelas 15,00h, totalizando cinco horas e meia de vôo,
cruzando parte de SC, o Paraná, São Paulo, parte de Minas Gerais, o
Distrito Federal, Goiás e Mato Grosso. Viajamos em aviões “Focker 100” e “Airbuss”,
todos da TAM. Desembarcamos no Aeroporto de Belmont, bonitinho e
acolhedor. Viajou conosco, a partir de Brasília, o senador Pedro Simon,
tendo se hospedado no mesmo hotel. Agia sempre de modo tranqüilo, o que
indica que a gesticulação usada na tribuna é mesmo teatro. Entre Cuiabá e
Porto Velho conversei muito com um Daniel Machado, proprietário de empresa
de ônibus, e “ele já queria me levar para compadre” (observação de Janda).
Ficamos amigos, trocamos endereços, ele nos ofereceu a casa em Manaus,
onde reside. Aprendi com ele algumas coisas sobre a região. Sobrevoamos
longos trechos de selva, onde só se via o verde do matagal e uma rede de
rios. Vez por outra uma estrada de terra vermelha que parece uma cicatriz
no chão. Se não erro nas contas, percorremos 4.400 km! Uff!
Ficamos hospedados no “Hotel Vila Rica” (Apt. 620), na principal avenida
de Porto Velho. É excelente, inclusive o restaurante; o tratamento é
perfeito. Centraliza as atividades sociais e culturais da cidade. Havia
festas, reuniões e uma exposição de artes plásticas bastante visitada.
Bonito, decorado com motivos e artesanatos locais, as garçonetes trajadas
à moda amazônica (batemos fotos com elas). Comidas típicas, peixes de água
doce e sucos de frutas regionais. Enfim, um ambiente agradável.
À noite, após o jantar, andamos pelo centro da cidade. Ela é feia, baixa,
com avenidas longas e retas, mas limpa. Para uma cidade amazônica, tem
pouquíssimas árvores. Os “cortadores de árvores” que eram degredados de
Portugal devem ter feito estágio por lá. Tem cerca de 700.000 habitantes,
muito mais que qualquer das nossas. Fomos ao único “shopping”, muito
modesto, bem na frente do hotel. Tem universidade, seis estações de
televisão e quatro bons jornais: “Alto Madeira” (já publicou coisas
minhas), “Estadão do Norte”, “Folha de Rondônia” e “Diário da Amazônia.”
Comprei todos e os examinei no hotel.
Foi um dia repleto.
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Dia 12, Sábado.
Pela manhã, andanças a pé pela cidade. Percorremos o centro e visitamos
bairros. Tem um comércio ativo mas sem luxo. Vendem cabras, galinhas,
pássaros, cachorros e gatos na rua. Muitos tipos de peixes e camarão à
venda, frutas e produtos locais. Existem diversas feirinhas que oferecem
badulaques. Fazemos algumas compras e visitamos bancas de jornais, muito
mal instaladas. O sol é de rachar catedrais, como dizia Nelson Rodrigues.
E o calor é reforçado pela ausência de árvores.
Almoçamos no hotel, onde serviram uma tremenda feijoada completa, com
certeza “muito adequada” ao calor. Como é tradicional na cidade, o povo
acorre em massa. O clima do restaurante era de festa.
À tarde, novas andanças, agora de carro. O motorista, Marcelo, fala pelos
cotovelos. Visitamos restaurantes e bares da margem do imenso rio Madeira,
os “points” da capital, bem arborizados e com belíssimas vistas. Fomos à
morada dos índios “guajará” (e outras sub-tribos), conversamos bastante
com eles, fizemos algumas compras de artesanato, como brincos, colares,
cocares. Pedi que falassem a língua nativa: é ininteligível aos nossos
ouvidos, toda consonantal, sem vogais. Janda, por brincadeira, se propôs a
comprar uma indiazinha de três meses, que estava completamente nua, mas
uma menina correu logo para pegá-la e a mãe exclamou de pronto: “Faça
uma!” Não tardou e os meninos começaram a tocar nossos braços, pernas,
cabeças, e lembrei que Darcy Ribeiro escreveu que índio não sabe conversar
sem tocar no interlocutor, gosta de tocar nos outros. O cacique nem se
dignou a nos cumprimentar, continuou refestelado na sua rede. Havia vários
cachorros, animais de que gostam. Antes que resolvessem tocar em partes
pouco indicadas, tratamos de partir.
Saindo dali, fomos ter à sede da “Estrada de Ferro Madeira-Mamoré”, hoje
extinta. Existem lá duas locomotivas, marias-fumaças, uma de modelo
americano, parecida com as usadas por aqui, e uma mais possante, de modelo
germânico. Também existe uma litorina fechada, com mecânica Ford e frente
que lembra um modelo antigo dessa marca, além de vagonetes e trilhos. Tudo
está abandonado debaixo daquilo que foi, em tempos melhores, imenso
barracão. Furtam as telhas, as peças das máquinas, os vidros, os trilhos,
as cercas. O local se transformou em antro de drogados e, à noite, nem a
polícia tem coragem de entrar. Calamidade! Uma estrada que custou
fortunas, centenas de vidas, suor e sofrimento, largada ao deus-dará. Até
alguns anos uma das locomotivas fazia passeios curtos por ali, mas um
desmoronamento na linha não permitiu mais a viagem. Outras locomotivas e
vagões estão largados em estações abandonadas do percurso. Fim melancólico
da lendária “ferrovia do diabo.”
Visitamos, em seguida, o porto de onde partem os barcos de passeio.
Estivemos num deles, muito grande, feito de boa madeira. Não fizemos o
percurso porque não havia passageiros suficientes. O barco era agradável e
limpo. Saindo de lá, percorremos a feira que fica rente ao cais, local de
reunião de gente mais simples, com barraquinhas que vendem bebidas e
comidas. Tomamos água de coco, bem mais doce que a vendida aqui; a fruta é
aberta de outro jeito. Na barranca do rio a erosão é visível, formando
sulcos profundos nos locais onde tiraram o mato. A terra é arenosa.
Visitamos depois a catedral, prédio monumental e antigo, de linhas
clássicas. O bispo anterior, já falecido, era catarinense, da família
Costa, parece que nascido em Lages. Lá conhecemos um corcunda falador que
trabalha no local há cinqüenta anos – é o “corcunda da catedral.” Mas não
é feio como Quasímodo. Saindo dali, fomos conhecer o Parque das
Seringueiras, muito amplo, arborizado exclusivamente com essas árvores,
bem cuidado, cercado e limpo. Visitamos o porto das balsas para Humaitá,
“última cidade do Amazonas” (como dizem), onde foi prefeito o escritor
Sérgio Olindense, muito amigo de Lima Barreto e tio de meu amigo Castello
Branco. Em meu livro “O Mulato de Todos os Santos” transcrevi uma crônica
dele, em apêndice. Visitamos outros prédios ilustres da cidade, igarapés
onde os peixes pulam sem parar, um trecho preservado da floresta e a outra
parte da capital rondonense.
O condicionador do táxi, muito forte, gripou a Jandira. As fungações se
juntaram às lágrimas provocadas pela tele-mensagem das filhas pelo dia das
mães.
À noite, recebemos no hotel a visita de Selmo Vasconcellos, carioca lá
radicado há 18 anos, jornalista e poeta, editor da página literária do
jornal “Alto Madeira.” Jantou conosco e batemos longo papo. Tiramos fotos.
Ele foi sobrinho de José Mauro de Vasconcellos, mas não tinha o tio em boa
conta, antes pelo contrário. Publicou coisas minhas. Excelente pessoa.
Achei-o muito estressado, precisado de umas férias.
Concluindo: a cidade tem um ar rural e pioneiro, embora seja a capital.
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Dia 13, Domingo.
Despedidas de Porto Velho. Pelas 7,00h rumamos para Guajará-Mirim, no
extremo oeste do Brasil, fronteira com a Bolívia. Viajamos em excelente
ônibus da “Eucatur”, pertencente ao grupo paranaense “União Cascavel.” A
estrada é péssima, uma buraqueira infernal, o retrato acabado da “já era
FHC”. Passamos por Jaci-Paraná e Vila Nova, lugarejos perdidos no ermo,
embora municípios. O desmatamento na região foi violento. As matas foram
queimadas sem dó e nem piedade, com as árvores em pé, do que resultou a
presença lúgubre de troncos calcinados, com os galhos abertos, como braços
implorantes. Um espetáculo feio, revelador de absoluta ausência de
consciência ecológica e total insensibilidade. E o pior é que o resultado
parece ter sido pífio, pois as fazendas são pobres, mal instaladas e
despovoadas de gado. Tudo indica, a julgar pelos nomes que ouvi, que os
queimadores de mato são os mesmos, ou descendentes, dos que devastaram o
Rio Grande do Sul, o nosso oeste, o norte do Paraná, o Mato Grosso e agora
andam por lá na mesma faina destruidora em conivência, é claro, com
autoridades e funcionários corruptos. Comenta-se que o valor da propina
corresponde ao tamanho da devastação. Não vimos queimadas, não era época.
Cruzamos rios e igarapés, algumas vezes sobre pontes que foram da Estrada
de Ferro Madeira-Mamoré, “a ferrovia do diabo.” Em Guajará, a 320 km de
distância, começa a selva verdadeira. Chegamos pelas 11,30h e Paulo
Saldanha, dono do hotel onde fomos, nos esperava na rodoviária. Simpático
e conversador, é advogado e bancário aposentado. O prefeito da cidade é
catarinense (Celso Pilon).
Pelas 13,00h, depois de percorrer 22 km de estrada de chão, carroçável,
numa caminhonete de tração dupla, chegamos ao “Pakaas Palafitas Lodge”
(Cabana Açaí 1), um hotel em plena selva amazônica, construído no encontro
dos rios Pacaás (águas negras) e Mamoré (águas acastanhadas), que correm
por longo trecho sem se misturarem. Erguido sobre palafitas de concreto,
muito altas, o hotel é coberto de palha nativa e as cabanas (apartamentos)
são interligadas por passarelas elevadas do chão em até três metros, na
altura das copas das árvores, cortando a floresta virgem que algumas vezes
cobre a passagem como um túnel vegetal. Existem, prontos, vários
quilômetros de passarelas, umas mais largas, outras mais estreitas,
estendendo-se em diversas direções. As cabanas têm nomes de frutas,
árvores e pássaros amazônicos (bico-de-fogo, açaí, ipê rosa, trapiá,
jenipapo, patoá, gameleira, ingá, pupunha, buriti etc). Estão prontas 28
cabanas das 50 projetadas. Elas guardam fidelidade às cabanas tradicionais
da região, mantendo a mesma aparência, têm as paredes externas revestidas
de uma espécie de bambu, com coberta e forro de palha, decoradas com
artesanatos e objetos locais. Muitas delas, como a nossa, têm um terraço
sobre o rio, de onde se descortina uma vista maravilhosa e se pode
observar os peixes pulando e os pássaros aquáticos. As cabanas têm todo o
conforto dos melhores hotéis, o restaurante é internacional, embora
enfatizando as comidas e bebidas regionais (peixes como o pirarucu,
comidas como a tapioca e o mingau de milho, sucos como o de cupuaçu etc).
O tratamento é esmerado.
Depois do almoço, percorremos as passarelas em todos os sentidos. Uma vai
dar no porto, outra conduz ao heliporto, uma terceira cruza parte da baía,
levantada sobre águas escuras e passando por matas tão fechadas que são
inexpugnáveis, outra percorre uma floresta de xaxins gigantes, mas todas
são cercadas de mato denso. São feitas de massaranduba, madeira de lei que
dura trinta anos exposta à intempérie, segundo dizem.
Faz um pouco de frio, o vento canta nos oitões. É estranho, mas temos que
nos agasalhar. Informam que a temperatura baixa a sete graus quando
derretem as geleiras andinas e o vento sopra do oeste. Cai um chuvisco
leve, que mal chega a molhar. O silêncio é enorme, só se ouve o marulhar
das águas do rio. Jantamos e depois assistimos a um vídeo sobre a Amazônia
(Rondônia e Roraima), mostrando búfalos selvagens, animais sem conta,
árvores e flores. Muito interessante.
Exaustos de andar e ver, dormimos ouvindo o cricrilar dos grilos, os
gritos da passarada noturna e o ruído dos peixes que saltam. Às vezes, ao
longe, o matraquear de um motor – é um pescador solitário desafiando a
escuridão compacta. Somos os únicos hóspedes; o povaréu que veio para o
dia das mães foi embora, uns de barco pelo grande rio, outros pela
estradinha. O”Pakaas” é nosso, como foi o petróleo!
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Dia 14, 2a f.
Logo pela manhã começamos a andar pelas passarelas. É o contato direto com
a selva. Percorremos todas, observando, ouvindo, comentando, fotografando.
Matas, águas, sons, cantos, gritos. Estranhamos não ouvir o bentevi,
presente em todos o lugares por onde temos andado. Árvores, arbustos,
cipós, trepadeiras, espinhos, parasitas, flores, folhas, ninhos – um
emaranhado intransponível. Alguém a pé, perdido ali, estaria morto.
Almoço no hotel (bobó de pirarucu com camarão de água doce, tapioca,
queijo caseiro, torta de coco e suco de cupuaçu). Reforçados, tratamos de
aproveitar o tempo.
“Seu” João, primo do proprietário (toda a equipe é da família), nos leva a
Guajará-Mirim. Fazemos a travessia do Mamoré num barco de bico chato e com
coberta e sanefas para o caso de chuva ou vento – são as “chatas”. Têm
capacidade para 15 passageiros. A travessia é feita em sentido enviesado,
evitando enfrentar a parte mais larga do rio. Nunca dizem “atravessar”,
mas “fazer a travessia.” Os barcos estacionam e partem na ordem de
chegada, como os táxis, e só levam passageiros, retornando vazios. Forma
de conciliar os interesses. A viagem leva uns dez minutos.
Em Guayramerin, na Bolívia, somos cercados por taxistas, motoqueiros,
vendedores e guias na estação das barcas. Escolhemos o Alexander, piloto
de uma das muitas motos com charretes para duas pessoas e tolda,
fabricadas no Peru. Percorremos a cidade, visitando praças, avenidas,
lojas, feiras, locais de interesse. Quase não existem carros, imperam as
motos de todos os tipos e esses “riquixás” motorizados. Compramos cartões,
jornais, alguns objetos e tecidos. Tiramos fotos diante da prefeitura,
tendo acima das cabeças o pavilhão tricolor boliviano tremulando ao vento.
Alexander fala bem o português e sabe tudo do Brasil, em especial do nosso
futebol, que conhece melhor que eu. As feiras, ruas, lojas e mercados são
limpos e o povo é muito amável no trato. O dono de uma lojinha, que se
dizia “quechua”, fala um pouco na língua nativa: ininteligível. A cidade
mais próxima é Riberalta, a uns 80 km de distância, que pode ser visitada
em ônibus de linha da “Eucatur”, partindo de Porto Velho. A cidade tem
ruas largas, é bem arborizada e a ausência de carros lhe dá um ar de
tranqüilidade. A presença de brasileiros é constante, não constitui
novidade. A cidade vive muito mais em função do Brasil que do Altiplano,
onde estão La Paz e os centros mais importantes.
Voltando a Guajará-Mirim, visitamos a Praça do Porto, local bonito, onde
estão hasteadas as bandeiras do Brasil e da Bolívia. Nela estão duas
locomotivas da extinta Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, de números 17 e
20. Ambas estão ao relento, cercadas de capim e enferrujando. Êta Brasil!
Visitamos depois o Museu Histórico, instalado na antiga estação da
ferrovia, e que possui um belo acervo. Lá existem um jacaré e um boto
empalhados, em tamanho natural, e uma sucuri (anaconda) com 12 metros de
comprimento. Existem relógios, sinos, seletivo, lanternas e outros
petrechos que foram da ferrovia, além de um sem número de coisas
interessantes. É bem visitado, a julgar pelas pessoas que haviam estado lá
naquele dia e assinaram o livro de presenças.
Já no carro, percorremos boa parte da cidade. É baixa, com ruas largas e
longas, bem traçada, mas mal cuidada. Tem mato nas sarjetas, lotes
baldios, material de construção nas calçadas. O prefeito catarinense
assumiu há pouco e a população lhe dá um crédito de confiança. Espero que
não esteja enganada.
À noite, no hotel, realizamos algo impressionante: a observação dos
jacarés. Acompanhados de dois “práticos”, munidos de boas lanternas,
percorremos as passarelas que ficam sobre a baía na tentativa de ver os
sáurios em seu “habitat.” Caminhamos e caminhamos, para cima e para baixo,
atentos ao menor ruído, mas a sorte não nos ajudou e nada vimos. Jandira
sentiu muito medo mas, como boa Ribas, nos acompanhou na aventura até o
fim. De fato, andar pelas passarelas à noite, naquela escuridão de breu,
compacta e impenetrável, é assustador. Com aquele friozinho – dizem os
entendidos – os jacarés se retraem. Azar nosso!
Voltando à cabana, ficamos um tempão sentados no terraço sobre o rio. A
escuridão é de “black-out”, nada se vê. O rio calmo corre em silêncio,
chegam até nós os sons indistintos da mata, caem na água as frutinhas das
árvores e os peixes saltam para pegá-las. Muito longe, o motor de algum
pescador que não teme a noite.
Durante o dia barcos de vários tipos, grandes e pequenos, sobem e descem
pelo rio. É a estrada líquida dos moradores.
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Dia 15, 3a f.
Pela manhã andamos pelas passarelas. Desta vez tivemos mais sorte porque
observamos um cardume de botos brancos (existem os rosas, mais raros) se
exibindo nas proximidades. Enormes, nadavam à flor da água, com os dorsos
lisos brilhando ao sol. O boto é respeitado por todos, ninguém o maltrata.
Faz parte do folclore amazônico. Segundo a lenda, ele se transforma em
galante rapaz, seduz e engravida as moças. Quando o filho não tem pai
conhecido, é chamado de “filho do boto.” Excelente explicação para alguma
escorregadela.
Depois de muito andar, tomei um longo banho solitário de piscina (fiquei
mais de uma hora dentro da água). Mergulhei, nadei, bracejei. A piscina é
linda, à beira do rio, embora em nível mais elevado, e a vista é
maravilhosa. Levei uma “torrada” como poucas, o sol tropical é de lascar!
Janda, enquanto isso, se refestelava numa espreguiçadeira, bebericando
sucos típicos.
No almoço, feito a capricho pelo mestre-cuca Geraldo, baiano bom de papo,
saboreamos um bom pirarucu e cocada branca. Delícia.
Pelas 15,00h iniciamos um passeio emocionante: a subida do rio Pacaás
Novos numa “voadeira”, como eles chamam as lanchas. Dotada de possante
motor de popa, desenvolve 70 km por hora e singra as águas “voando.”
Pilotada por um “prático”, subimos pelo rio de águas negras, embora
límpidas, no qual não se vê viv’alma ou vestígio humano. Ao contrário dos
nossos, nele não bóiam latas, plásticos ou papéis. É profundo e suas águas
espelhadas refletem a vegetação, criando efeitos curiosos. Aves aquáticas
voam por ali. Apenas a natureza em estado puro. Vão conosco o Geraldo,
cozinheiro, e o piloto.
Depois de muito navegar, ancoramos na morada de um sitiante ribeirinho,
“seu” Chico Maturana. Hospitaleiro, ele nos recebe com alegria e oferece
café (“comprado” – faz questão de informar). Tinha outras visitas, “seu”
Raimundo, a esposa Nilza e um filho, que moram quatro horas rio acima e
voltavam de Guajará. Pessoas amáveis. “Seu” Chico diz que é índio, mas
esqueceu a língua nativa, criou-se com uns padres. Em compensação, sabe
palavras de latim! Está com a mulher doente e luta sozinho pela
sobrevivência.
Tem duas casas, próxima uma da outra, no estilo das cabanas tradicionais,
cobertas de palha, sem divisões internas e apenas com as paredes
indispensáveis à defesa das chuvas e dos ventos. Uma é a cozinha, onde
prepara os alimentos, guarda os petrechos e passa parte do tempo; na outra
ficam o quarto de dormir e uma espécie de área externa. Mais para baixo
fica a “casa da farinha”, um telheiro onde estão o forno e a prensa
destinados à fabricação da farinha, o “pão do indígena”. Lembrei outra vez
de Darcy Ribeiro explicando esses detalhes em suas obras.
Através de uma picada fechada entramos fundo na mata em direção às roças
do sitiante. Nela quase não penetra o sol. Cruzamos plantações de mandioca
viçosa, bananeiras, milho, feijão e hortaliças. No pátio da casa há um
pomar com cajueiros, goiabeiras e árvores frutíferas da região. Como a
erosão lava o húmus, ele é obrigado a adubar, espalhando o adubo à mão,
depois de revolver a terra com a enxada. Um trabalho árduo, que me deixou
penalizado da sorte daquele brasileiro. Deixei com o hoteleiro um
dinheirinho para ele. Galinhas e cachorros não faltam. Tiramos fotos
(pediram que enviasse cópias, o que farei amanhã) e nos despedimos
daqueles irmãos perdidos num recanto da floresta sem fim. Reiniciando a
subida do rio, “seu” Raimundo abanava para nós.
Ao entardecer, com o sol se pondo, iniciei uma caminhada solitária pela
passarela do xaxim, a mais próxima do chão e também a mais escura. Jandira
não queria ir, mas também não queria ficar; acabou ficando. Foi
impressionante! Bichos grandes corriam por baixo da passarela (antas,
pacas, cotias, tatus, tatetos, tamanduás?), pássaros levantavam vôos
pesados, assustados com minha presença, rugidos fortes se ouviam mais
longe (bugios, guarás, jaguatiricas?), guinchos, uivos e roncos estranhos,
pios, estalidos, sons inexplicáveis. Fiquei arrepiado. A floresta é um
mundo repleto de vida invisível!
Soube que o pai do hoteleiro, Paulo Saldanha Sobrinho, foi historiador. O
filho me ofereceu um livro de autoria do pai: “Fatos, Histórias e Lendas
do Guaporé.” Deve ser interessante e vou ler com atenção. Como se sabe,
Rondônia foi o Território Federal do Guaporé.
Cansados, nos recolhemos para afivelar as malas e descansar. Creio que
agora posso dizer que conhecemos um pouco mais do Brasil, desta vez vimos
a Amazônia por dentro. E Jandira foi, como sempre, uma companheira sem
igual. Amanhã começamos a voltar.
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Dia 16, 4a f.
Pelas 6,30h servem-nos lauto café na cabana. O próprio Saldanha nos leva a
Guajará. Embarcamos num ônibus da “Viação Rondônia”, bem inferior ao
primeiro, e chegamos em Porto Velho pelas 13,00h. O motorista da agência
nos leva diretamente ao Aeroporto de Belmont, onde fazemos lanche e
comprinhas, enviamos alguns cartões postais. Em Brasília ficamos no “Hotel
Aracoara” (Apt. 805), hotel de aparência boa, mas muito fraco. Aqui houve
o único senão da viagem: a agência não nos esperou e nem levou de volta ao
aeroporto. Jantamos no restaurante do hotel e depois fomos ao “Brasil
Shopping”, recém-inaugurado, mas com poucas opções.
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Dia 17, 5a f.
Pela madrugada caiu um violento temporal, com raios, relâmpagos, trovões e
chuva torrencial. Na hora da partida, porém, o tempo estava bom e a
Capital parecia lavada, embora fosse necessário lavar a sujeira dos
políticos. Nem à noite e nem pela manhã havia gente nas ruas; parecia uma
cidade fantasma. Leio na “Folha” artigo sobre Monteiro Lobato e a
segurança pública e fiquei pensando como se escreve bobagem sobre ele.
Pobre Lobato!
Em Guarulhos a espera é longa. O mau tempo no Sul atrasa os vôos. Na
livraria do aeroporto compro os jornais e um romance de Mário Prata, de
quem nunca li nada em livros, apenas esparsos. Janda escolhe presentinhos
para os netos. Encontro o advogado João Luiz Bernardes, de Blumenau, e
batemos bom papo.
Chegamos em Navegantes pelas 16,00h. A agência nos esperava. Em casa tudo
bem. Agora toca a desfazer as malas, arrumar as coisas e enfrentar o monte
de correspondência que me espera. Uff!
Pelos meus cálculos, fizemos 8.800 quilômetros pelo ar (11 horas de vôo),
640 quilômetros de ônibus, 88 quilômetros de caminhonete, cerca de 140
quilômetros de “voadeira”, sem contar o que andamos nos “transfers”, de
táxis, barcos e “riquixás” bolivianos. Foi uma jornada e tanto!
Deixei por lá alguns livros meus. Vamos ver se aumenta o meu intercâmbio
literário com a região. E fixo aqui, mais uma vez, o meu agradecimento à
“negra” Jandira, sempre ao meu lado nessas aventuras de andarilho, tudo
suportando com serena paciência.
(27 de janeiro/2007)
CooJornal no 513
Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC
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