30/12/2006
Ano 10 - Número 509


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

PERSONAGENS E AUTORES

 

Passam os anos e continuo um leitor voraz. Costumo ler até gêneros que têm poucos aficionados, como teoria e história literária, crítica e ensaios, inclusive aqueles bem encruados. Perdi a conta dos livros que li, embora a pilha dos que aguardam leitura não cesse de crescer. Nestes últimos meses venho lendo os romances que a “Folha de S. Paulo” publicou, alguns deles já lidos, mas que reli com grato prazer, como aconteceu com “O Velho e o Mar”, de Hemingway, e “O Processo”, de Kafka. Li ainda “A Linha de Sombra”, de Joseph Conrad, “O Grande Gatsby”, de F. Scott Fitzgerald, “Pantaleão e as Visitadoras”, de Mario Vargas Llosa, e “Nosso Homem em Havana”, de Graham Greene. Todos romances de primeira linha, cada autor resguardando sua personalidade e estilo.

Quanto ao “Pantaleão”, de Vargas Llosa, é um romance que vem ratificar aquilo que sempre afirmo: a semelhança impressionante entre todos nós, os sul-americanos. O livro retrata um “clima” que em nada difere do nosso, dando a impressão de que o Peru não passa de outra região brasileira, ainda que falando espanhol. Nele estão as malandragens dos personagens, o uso do jeitinho, o jogo-de-cintura, as negaças, as jogadas dos políticos, as religiões messiânicas explorando os incautos, a devastação inclemente da floresta amazônica, a imprensa sensacionalista, a corrupção, a exploração de menores e prostitutas, a ausência do poder público e por aí afora. Fica a mesma sensação deixada pelos romances de Jorge Amado ou Érico Veríssimo. Somos todos “hermanitos”, ainda que de idiomas diferentes.

“Nosso Homem em Havana” é obra de um dos maiores escritores do século passado e constitui uma crítica terrível ao Serviço Secreto Britânico, colocado em posição deveras ridícula. Revela, por outro lado, a podridão reinante no governo de Fulgêncio Batista, na fase anterior à Revolução Cubana, fato que deve ter facilitado a vitória de Fidel Castro. Para escrever esse livro Greene passou longa temporada em Cuba, observando e anotando, o que deu ao romance aquele ar de indiscutível veracidade. A escritora francesa Régine Deforges, em seu premiado romance “Cuba Libre!”, coloca Graham Greene no enredo, convivendo com os próprios personagens do escritor, num entrelaçamento muito curioso. Assim, Greene seria hóspede do médico alemão aposentado, Dr. Hasselbacher, que serve de guia ao escritor nas andanças cubanas, vigiados de perto por um capitão Ventura, chefe da repressão policial da ditadura de Fulgêncio Batista. Em companhia de Léa, heroína do romance de Deforges, Greene e Hasselbacher chegam a comparecer a uma festa oferecida por Hemingway, na sua célebre “Finca Vigía.” No romance de Greene, Hasselbacher é amigo da figura central, Jim Wormold, e acaba assassinado, e surge um capitão Segura, chefe da repressão, especialista em torturas e que usava uma cigarreira recoberta com pele humana.

Greene, sem dúvida, inspirado na realidade cubana, transformou figuras da época em personagens de seu romance. Deforges, inspirada na mesma realidade, com certeza leitora de Greene, colocou em sua obra personagens dele, com ligeiras alterações, e fez dele próprio seu personagem. Deforges fez com Greene o que ele fizera com outros. A situação criou um entrelaçamento dos mais curiosos, num típico caso de intertextualidade – como diriam os teóricos.



(30 de dezembro/2006)
CooJornal no 509


Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC