16/01/2024
Ano 27
Número 1.351





ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


O ROMANCISTA DE MISÉRIA

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


Com o mesmo prazer de sempre, acabo de reler o romance “Clara dos Anjos”, obra póstuma de Lima Barreto (1881/1922), um dos maiores ficcionistas brasileiros. Só publicada em 1948, essa obra guarda a rara curiosidade de ter versões como conto, novela e, por fim, romance, todas integrando as Obras Completas do escritor. Foi, portanto, um texto trabalhado com esmero e nele não se notam aqueles defeitos mais comuns que os críticos costumam apontar em suas obras. Memorialista em muitos trechos, neles o escritor como que se retrata, anotando com minúcias de observação a vida dos subúrbios cariocas, onde vivia a gente humilde, na periferia da então capital da República. É visível a intenção de denúncia contida no enredo, apontando a situação em que vivia toda uma população entregue ao mais completo abandono. Trata-se de um livro militante, ainda que sem intenção ideológica.

Considerado por muitos “o Machado de Assis dos pobres”, mulato, pobre e entregue ao álcool, em especial no fim da vida, Lima Barreto morou sempre no subúrbio, convivendo com a pobreza dos habitantes das “casas, casinhas, casebres, barracões e choças” afastados do centro, onde imperavam a violência, a ausência dos serviços públicos elementares e a pobreza generalizada. Sem acesso à educação, à saúde e aos bens da vida, o sofrimento estava sempre presente naquelas existências opacas e sem brilho. Desse cenário taciturno Lima Barreto se tornou o grande cronista e através de suas obras é possível reconstituir com precisão aquele período histórico de nossa ex-capital. Suas obras são documentos históricos e, acima de tudo, sociológicos, envoltos em excelente ficção.

Vítima ele próprio do preconceito de cor, sofrendo humilhações de toda ordem, Lima Barreto tornou-se, no fundo, um revoltado contra a discriminação. Muito humilde e tímido para gritar, protestar e brigar, colocou esse sentimento que lhe pesava na alma nos romances que escreveu. Em “Clara dos Anjos” a vítima é uma moça pobre, mulata, bonitinha e prendada, seduzida de forma calculada por um mau-caráter que depois a abandona à própria sorte: Cassi Jones. Branco, pertencente a uma classe um pouco superior, o personagem é o retrato do malandro consumado. Vadio, incapaz de ocupação honesta, perambulava pelas ruas envolvido com modinhas e tocatas de violão, galos de briga e atividades congêneres, além de especialista na sedução de jovens desavisadas. Vestido no rigor da moda suburbana,conseguia se safar da cadeia graças à proteção da mãe e de outras pessoas, embora fosse renegado pelo pai e as irmãs. Forma ele ao lado dos personagens desajustados que povoam a obra do romancista, entre os quais o célebre “desmanchador” de comícios, Lucrécio Barba-de-Bode. Diante dessa situação de inferioridade e abandono que Lima Barreto denuncia, o sedutor foge com tranqüilidade, deixando a pobre Clara no maior desespero. Abraçando fortemente a mãe, a moça exclama “com um grande acento de desespero: - Mamãe! Mamãe! Nós não somos nada nesta vida!”

Denunciando o preconceito vigente, a condição inferior da mulher no seu tempo e o abandono em que vivia o subúrbio em geral, Lima Barreto deixou muito nítida a indicação do futuro carioca. Havia em suas obras uma como que premonição do que viria a ser o Rio de Janeiro de hoje. Como dizia Gilberto Freyre, nas grandes obras o tempo é tríbio: revive o passado, descreve o presente e projeta o futuro.



(23 de dezembro/2006)
CooJornal no 508




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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC



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