16/09/2022
Ano 25
Número 1.288






ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


LIMA BARRETO

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Discriminado e humilhado, Afonso Henriques de LIMA BARRETO (1881/1922) viveu e morreu sem ter alcançado o reconhecimento de seus contemporâneos. Volvidos os tempos, no entanto, tornou-se uma das presenças mais fortes do panorama literário brasileiro. Livros, ensaios, teses, reportagens e artigos sobre sua vida e sua obra são constantes. Suas tramas ganharam os palcos, a televisão e o cinema, como o filme “Policarpo Quaresma”, marco da cinematografia nacional, revivendo o célebre personagem patriótico e quixotesco que acaba morrendo por amor a este Brasil. As grandes editoras, sucessoras daquelas que lhe deram as costas e se recusaram a publicar seus livros, lançam hoje, em edições luxuosas, sucessivas edições das obras de sua autoria, e o fazem sem o menor pudor. Conhecendo suas raivosas reações diante da injustiça, fico a imaginar o que diria ao encontrar nas livrarias seus livros revestidos de tanto luxo.

Entre os múltiplos ensaios que têm surgido nestes últimos tempos, merece referência “Lima Barreto e os romances de crítica social”, de José Ramos Tinhorão, com o qual este autor abre o livro “A música popular no romance brasileiro” (Editora 34 – S. Paulo – 2000). Especialista em música popular, o ensaísta parte de um enfoque diferente, embora se revelando um minucioso conhecedor da obra de Lima Barreto e de sua personalidade.

Mesmo entregue ao alcoolismo, em especial nos últimos anos de vida, e carregando a péssima fama de boêmio e frequentador de tascas imundas, na verdade Lima Barreto era muito mais um doente, dependente do álcool, que um boêmio. Manteve intacto até o fim o seu código de ética e morreu preocupado com ínfima dívida para com um amigo. Jamais perdeu a capacidade de julgar os fatos e se manteve fiel aos princípios que sempre defendeu. Era, na verdade, aquilo que se poderia chamar de moralista e até mesmo de puritano. Não se tem notícia de que tivesse participado de farras desbragadas, onde quer que fosse, muito menos em locais “pouco recomendáveis.” Conservou grande respeito pelas mulheres, pelos humildes e pelas instituições. Poderia ser considerado um legalista, tantas são as vezes em que cita a Constituição e as leis em defesa de seus pontos de vista. Mas caiu nos braços do álcool e ele o dominou sem remédio.

Todos esses aspectos são bem apanhados por Tinhorão. Relata ele que Lima Barreto tinha birra de certa música carnavalesca que celebrava a mulata (“Vem cá mulata!”) porque sua mãe era mulata e via na letra maliciosa um insulto às mulatas em geral, entre as quais a própria mãe. Coerente com a moral dominante na época, Lima não nutria grande simpatia por seresteiros, compositores de modinhas e tocadores de violão. Seu personagem Cassi Jones, do romance “Clara dos Anjos”, era um amoral, sedutor de moças pobres e recheado de defeitos. Ricardo Coração dos Outros, o professor de violão do Major Quaresma, que teria sido inspirado em Catulo da Paixão Cearense, não era flor que se cheirasse, ainda que não se saiba se isso aconteceu por mera coincidência ou se Lima tomou como modelo o célebre Catulo porque, segundo Tinhorão, também não foi lá um modelo de virtudes. Seja como for, na obra de Lima os tocadores de violão, os modinheiros e os carnavalescos em geral são, pelo menos, suspeitos.

Diz o ensaísta que Lima tinha “ojeriza pessoal pelos cantores de modinhas sentimentais, especialistas, a seu ver, em simulações amorosas...” Mesmo pobre, mestiço, discriminado e doente, “Lima Barreto deixava perceber seu inegável sentido elitista na avaliação do ofício artístico.” Todas essas ideias, opiniões e manias seriam registradas também por meu xará Enéas Ferraz, no livro “História de João Crispim”, espécie de biografia romanceada de Lima Barreto, hoje uma raridade bibliográfica. Conclui-se, pois, que o falso boêmio Lima Barreto foi mesmo um conservador, o que não impediu que fosse crucificado pela boemia que não exerceu. Mas nada disso sequer diminui sua obra que o tornou o maior e o mais brasileiro dos romancistas, segundo o juízo do severo crítico Agripino Grieco.

O livro de Tinhorão contém outros ensaios modelares, entre eles os dedicados a Érico Veríssimo e Afonso Schmidt, boas referências aos esquecidos Galeão Coutinho e Patrícia Galvão, a Pagu, e o perfil de Catulo da Paixão Cearense, sempre tão louvado mas tão pouco conhecido. Especialista em música popular, José Ramos Tinhorão se revela um excelente crítico literário.


(RT, 16 de dezembro/2006)
CooJornal nº 507

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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC





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